domingo, 30 de dezembro de 2012

Máquinas de imagens: uma questão de linha geral

Philippe Dubois

O que são as máquinas semióticas e como elas intermedeiam as nossas relações sociais e as nossas representações de mundo?
As máquinas semióticas (símbolos) são dedicadas à tarefa de representação, com possibilidades para o processamento e produção de signos. Enquanto instrumentos (technè) promovem a intermediação entre o homem e o mundo no processo de construção simbólica.
De acordo com as abordagens desenvolvidas por Dubois (2004), as máquinas, principalmente a partir do século XIX, vão modificar nossa relação com a realidade através de processos de captura, de prefiguração, de organização da nossa visão (câmara escura); de produção de imagens, de inscrição (fotografia); de visualização, recepção do objeto visual, de contemplação (cinematógrafo); de transmissão e difusão de imagens (televisão/vídeo); de síntese, de virtualização da imagem (imagem informática). As máquinas passaram (ainda passam) por uma sequência espiral de evolução, interferindo decisivamente na cadeia de produção da imagem. Essa evolução não representa simplesmente um novo estrato suplementar em cada etapa (momento), formam um “circuito de representação”, em especial com a informática.

“A expressão ´novas tecnologias´ no domínio das imagens nos remete hoje a instrumentos técnicos que vêm da informática e permitem a fabricação de objetos visuais. Uma perspectiva histórica elementar mostra claramente, porém, que não foi preciso esperar o advento do computador para se engendrar imagens sobre bases tecnológicas” (p. 31).
“... o termo technè corresponde estritamente ao sentido aristotélico da palavra arte, que designava não as ´belas-artes´ (acepção moderna da palavra, que surge no século XVIII), mas todo procedimento de fabricação segundo regras determinadas e resultante na produção de objetos belos ou utilitários” (p. 32).
“A technè é então, antes de mais nada, uma arte do fazer humano” (p. 33).
De acordo com Dubois (2004), “produtos tecnológicos”, compreendidos aqui como “máquinas de imagens”, exigem, desde os registros humanos nas cavernas do período paleolítico, dispositivos técnicos de base constituídos de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo).
Analisando parte da linha histórica das tecnologias da imagem, o autor faz uma abordagem de “quatro entre as ´últimas tecnologias´ que surgiram e sucederam de dois séculos para cá e introduziram uma dimensão ´máquinica´ crescente no seu dispositivo, reivindicando sempre uma forma inovadora” (p. 33). São elas: a fotografia; o cinematógrafo; a televisão/vídeo; e a imagem informática.
“Cada uma destas ´máquinas de imagem´ encarna uma tecnologia e se apresenta como uma intervenção de certo modo radical em relação às precedentes. A técnica e a estética nelas se imbricam, dando lugar a ambiguidades e confusões deliberadamente cultivadas, que tentarei deslindar aqui ao máximo” (p. 33).

A Novidade como Efeito de Discurso
De acordo com Dubois, a “novidade” associada à questão da tecnologia funciona como um efeito de linguagem, de tanto ser alardeada em cada momento de forma recorrente como uma “intenção revolucionária”. E que esse discurso de inovação se apoia numa retórica e numa ideologia.
“... todos esses discursos do novo traduzem um hiato completo entre, de um lado, uma ideologia voluntarista da ruptura franca e do progresso cego (que deriva do mais puro intencionalismo) e, de outro, uma realidade dos objetos tecnológicos, que procede do pragmatismo mais elementar. Esse hiato fica patente na constatação de que cada tecnologia produz, na realidade dos fatos, imagens que tendem a funcionar esteticamente quase ao contrário do que pretendem os discursos das intenções (tecnicamente ´revolucionários´)” (p. 35).
O autor apresenta “três fios” que permitem uma abordagem mais precisa de três problemáticas da “estética de representação”, o que possibilita a observação como as diferentes máquinas de imagens das últimas tecnologias tecem variações numa modulação continua de uma a outra. Os eixos, numa concepção “dialética conceitual entre dois polos antagônicos”, são: “maquinismo-humanismo”, “semelhança-dessemelhança” e “materialismo-imaterialidade da imagem” (p. 35-36).

A questão maquinismo-humanismo (o lugar do Real e do Sujeito)
“... a máquina, neste estágio (pensemos na câmara escura, por exemplo), é uma máquina puramente óptica, de pré-figuração, e intervém antes da constituição propriamente dita da imagem (da qual funciona como uma condição previa)” (p. 36).
“São como próteses para o olho, não são operadores de inscrição. Esta, que produz propriamente a imagem, continua se exercendo unicamente pela intervenção gestual do pintor ou desenhista” (p. 37).
“... o que aparece claramente também desde este estágio, é que as máquinas, enquanto instrumento (technè), são intermediários que vêm se inserir entre o homem e o mundo no sistema de construção simbólica que é o princípio mesmo da representação” (p. 38).
“... o advento da imagem fotográfica, no início do século XIX, vai dispor em novo patamar a maquinização da figura, estendendo sua intervenção à segunda fase do processo. A máquina, agora, não se limitará a captar, prefigurar ou organizar a visão (esta fase já está assegurada e não se perderá tão cedo, a câmara escura permanecerá a base de três dos quatro outros sistemas), mas produzirá, justamente, a inscrição propriamente dita.” (p. 38).
“A ´máquina´ intervém aqui, portanto, no coração mesmo do processo de constituição da imagem, que aparece assim como representação quase ´automática´, ´objetiva´, ´sine manu facta´ (acheiro-poiète). O gesto humano passa a ser um gesto mais de condução da máquina do que de figuração direta” (p. 38).
“... à esta tendência à ´desumanização´ do dispositivo de fabricação das imagens, vai se atribuir cada vez mais uma dimensão axiológica, vendo-se nela uma ´perda de artisticidade´” (p. 42).
“... a evolução do maquinico (a história das tecnologias) e o problema do humanismo ou da artisticidade (questão estética) são duas coisas bem diferentes: o desenvolvimento daquela não tem necessariamente como correlato a regressão destes” (p. 43).
“... com o surgimento do cinematógrafo no final do século XIX, o avanço do maquinismo cumpre uma etapa suplementar: desta vez, é uma terceira fase do dispositivo que se tornará ´máquinico´: a fase da visualização. Uma máquina de ordem três vem assim se acrescentar às duas outras. (...) uma máquina de recepção do objeto visual: com efeito, só se pode ver as imagens do cinema por intermédio das máquinas, isto é, no e pelo fenômeno da projeção” (p. 43).
“... se o maquinismo ganha nela um estrato a mais no sistema geral das imagens, isto não resulta numa perda acentuada de aura ou artisticidade. Pelo contrário, podemos mesmo considerar que a maquinaria cinematográfica é em seu conjunto produtora de imaginário (dai provavelmente a singularidade exemplar e a força incomparável do cinema). (...) Sua maquinaria é não só produtora de imagens como também geradora de afetos, e dotada de um fantástico poder sobre o imaginário dos espectadores. A máquina do cinema reintroduz assim o Sujeito na imagem, mas desta vez do lado do espectador e do seu investimento imaginário, não do lado da assinatura do artista” (p. 44).
“... vemos assim que a questão da relação maquinismo-humanismo é menos histórica na progressão contínua (cada vez mais máquina para menos humanidade) do que filosófica na tensão dialética que sempre varia, mas não linearmente. (,,,) A dialética entre estes dois polos, sempre elástica, constitui o aspecto propriamente inventivo dos dispositivos, em que o estético e o tecnológico podem se encontrar” (p. 45).
“... em menos de um século, toda a cadeia de produção da imagem (pré-visão, inscrição, pós-contemplação) se tornou assim progressivamente ´máquinica´, cada nova máquina não suprimindo as precedentes (estamos longe da lógica da tábua rasa), mas vindo se acrescentar a elas, como um estrato tecnológico suplementar, como uma volta a mais numa espiral” (p. 45).
A indústria tecnológica ganhará cada vez mais terreno...
“Com o advento e a instalação progressiva da televisão e depois do vídeo (que se estende por muito tempo, ocupando praticamente toda a primeira metade do século XX), uma espécie de quarto estrato máquinico vem se superpor aos três outros. O que especifica a maquinaria televisual e a transmissão. Uma transmissão a distância, ao vivo e multiplicada” (p. 46).
“A imagens televisual não é algo que se possua como um objeto pessoal nem algo que se projete num espaço fechado (como a ´bolha´ da sala escura do cinema); ela é transmitida para todo lugar ao mesmo tempo. (...) A imagem-tela ao vivo da televisão, que não tem mais nada de souvenir (pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no presente, onde quer que seja. Ela transita, passa por diversas transformações, flui como um rio sem fim” (p. 46).
“... a televisão, no fundo, transformou o espectador – que no anonimato da sala escura tinha ao menos uma forte identidade imaginária – numa espécie de fantasma indiferenciado, de tal modo disseminado na luz do mundo que se tornou totalmente transparente e invisível, e deixou de existir como tal. Agora, ele é no máximo um número, um alvo, uma taxa de audiência: uma onipresença fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência (...) não há mais relação intensiva, só nos resta o extensivo, não há mais Comunhão, só nos resta a Comunicação” (p. 46-47).
“Enfim, depois das maquinarias de projeção e de transmissão, que expandiram no tempo e no espaço a visualização e a difusão da imagem, uma ´última tecnologia´ veio completar a panóplia neste último quarto do século XX, e seu impacto histórico parece (pelo menos) tão importante quanto o das invenções precedentes. Trata-se da imagem informática, também chamada de imagem de síntese, infografia, imagem digital, virtual, etc. A maquinaria que se introduz aqui é extrema. (...) com a imagem informática, pode-se dizer que é o próprio ´Real´ (o referente originário) que se torna maquínico, pois é gerado por computador. (...) Não há mais necessidade destes instrumentos de captação e reprodução, pois de agora em diante o próprio objeto a se ´representar´ pertence à ordem das máquinas. Ele é gerado pelo programa de computador, e não existe fora dele. É o programa que o cria, forja e modela o seu gosto. È uma máquina de ordem cinco (que retoma as outras no seu pondo de origem), não de reprodução, mas de concepção. Até então, os outros sistemas pressupunham todos a existência de um Real em si e para si, exterior e prévio, que cabia às máquinas de imagem reproduzir. Com a imagerie informática, isto não é mais necessário: a própria máquina pode produzir seu ´Real´, que é a sua imagem mesma. Dito de outro modo, os dois extremos do processo (o objeto e a imagem, a fonte e o resultado) se encontram aqui para se tornarem uma coisa só, provocando uma confusão por colisão, uma catástrofe (de acordo com René Thom e sua teoria da catástrofe)” (p. 47).
“O próprio mundo se tornou máquinico, isto é, imagem, como numa espiral insana. A realidade passa a ser chamada de ´virtual´” (p. 48).
“Não só não há mais ´Real` (nem ´representação´ portanto), como também podemos dizer que não haja mais imagens. A chamada imagem de síntese, em certo sentido, não existe: a síntese é apenas um conjunto possível (o programa) cuja atualização visual é um simples acidente, sem objeto real. (...) a síntese não seria assim nada mais do que sonham todos os fotógrafos à espera da Revelação. A única diferença é que, agora, esta imagem virtual não passa de uma das soluções pré-vistas do programa” (p. 48-49).

A questão semelhança-dessemelhança
“Uma outra perspectiva de conjunto sobre a história das máquinas de imagem, uma outra ´linha geral´ que eu gostaria de seguir é a da velha questão da semelhança (e seu reverso: a desemelhança). (...) assim como, à medida que o sistema de imagens se sucediam no tempo, o maquinismo parecia crescer em detrimento             da presença e das intervenções humanas (...) poderíamos pensar, à primeira vista, que o encadeamento das tecnologias da imagem caminhava unilateralmente em um aumento constante do grau de analogia e, portanto, das capacidades de reprodução mimética do mundo, como se cada invenção técnica pretendesse necessariamente aumentar a impressão de realidade da representação. Veremos porem que esta aparente  teleologia também se revela enganosa e que, de fato, a cada momento da história dos dispositivos, a tensão dialética entre semelhança e dessemelhança reaparece – e independentemente dos dados tecnológicos, pois a questão em jogo é estética” (p. 49).
“Com o desenvolvimento espetacular da imagem fotográfica, o ganho de realismo na imagem aparecerá como imediato e todos o proclamarão. (...) À comodidade e à prontidão do procedimento, a fotografia acrescentaria uma terceira vantagem, a ´exatidão´. Precisão dos detalhes, nitidez dos contornos, gradação fiel das cores e, sobretudo, ´verdade das formas´. Em última análise, o ganho de analogia trazido pela fotografia seria de ordem não só óptica, como também (e mais essencialmente) ontológica. Seria uma questão de verdade da imagem” (p. 50).
Houve uma transição de um efeito de realismo, das pinturas, para um efeito de realidade, da fotografia “(da ordem da estética da mimese). Se o primeiro encara os dados em termos de semelhanças, o segundo o faz em termos de existência e de essência. E paradoxalmente, o deslocamento que assim se opera permite concluir que na postura ontológico-fenomenológica, a semelhança deixa de ser um critério pertinente...”  (p. 51).
“Quando o cinematógrafo se instala, um novo ´suplemento de analogia´ imediatamente surge: o realismo cinematográfico          acrescenta ao realismo do vestígio fotoquímico o da reprodução do movimento, que é um realismo do tempo” (...) Mesmo que sob uma forma ilusória, que nos engana com nosso próprio consentimento e prazer, a mimese fílmica expõe o mundo em sua duração e em seus movimentos (p. 51-52).
“... com o circuito eletrônico da imagem do vídeo, não só vemos a imagem do mundo em movimento (tal como ele se move em sua duração própria), como também a vemos ao vivo. É a mimese do ´tempo real´: o tempo eletrônico da imagem é (sincronizado com) o tempo do Real. O realismo da simultaneidade vem se acrescentar ao do movimento para formar uma imagem que nos parece cada vez mais próxima e decalcada no real, a ponto de gerar por vezes confusão” (p. 52).
“Tempo durativo, tempo real, tempo contínuo, a imagem-movimento do cinema e da televisão/vídeo parece assim levar o mimetismo e a reprodução do mundo ao seu extremo, até o absurdo...” (p. 53).
Com a imagem informática: “A partir do momento em que a máquina deixa de reproduzir para gerar seu próprio real (que é a sua imagem mesma), é claro que a relação de semelhança perde um pouco o sentido, pois já não há mais representação nem referente. (...) não é mais a imagem que imita do mundo, é o ´real´ que passa a se assemelhar à imagem, Na verdade, trata-se de uma espiral infinita, uma analogia circular, como uma serpente que morde a própria cauda” (p. 53).
“É provavelmente por isso que a maior parte das imagens de síntese, apesar de poder inventar figuras visuais totalmente inéditas e nunca vistas, esforça-se ao contrário para reproduzir imagens já disponíveis, objetos já conhecido do mundo. Elas apostam na semelhança (mesmo que falseada ou forçada), não tanto para mostrar que podem ´fazer tudo´, mas porque não sabem mais o que fazer (o que seja diferente) (p. 53).
“... a questão da semelhança não é uma questão técnica, mas estéticas. Assim, se o analogismo encontrou nos diversos sistemas de representação anteriormente evocados um terreno aparentemente propício à sua expansão, cabe notar porem que isto concerne apenas a certa forma de figuração – parcial, ainda que semelhante. (...) Toda representação implica sempre, de uma maneira ou de outra, uma dosagem entre semelhança e dessemelhança. E a história estética das máquinas de imagens, esse traçado de linhas gerais, é feita de sutis equilíbrios entre esses dados” (p. 54).
“... a dimensão mimética da imagem corresponde a um problema de ordem estética, e não é sobredeterminada pelo dispositivo tecnológico em si mesmo. Todo dispositivo tecnológico pode, com seus próprios meios, jogar com a dialética entre semelhança e dessemelhança, analogia e desfiguração, forma e informe. A bem da verdade, é exatamente este jogo diferencial e modulável que a condição da verdadeira invenção em matéria de imagem: a invenção essencial é sempre estética e nunca ética” (p. 57).
Podemos dizer que a pintura, a fotografia, o cinema, a televisão são suplementos de analogia. Assim como a informática, mas esta vai além.

A questão materialidade-imaterialidade
“... de início poderíamos ver aqui também uma progressão quase contínua e unilateral, na sucessão dos sistemas, de uma desmaterialização crescente da imagem, que se tornaria cada vez mais ´objetal´ e mais ´virtual´. (...) Veremos, porem, mais uma vez que este esquema teleológico é extremamente redutor e que devemos absolutamente dialetizá-lo, evitando a confusão entre os terrenos estéticos e tecnológicos. (...) a imagem da pintura é, entre as que nos ocupam aqui, aquela cuja materialidade é mais diretamente sensível. (...) Para que quer que tenha não só visto, mas também tocado um tela com a mão, sentido sua espessura e sua consistência, sua lisura ou sua rugosidade, não há dúvida: a pintura atinge um extremo de materialidade concreta, tátil, literalmente papável. (...) Comparativamente, a imagem fotográfica, objeto múltiplo ou ao menos reprodutível, possui certamente menos relevo e menos corpo. Sua tactilidade é uma questão não tanto de material figural quanto de objectualidade figurativa. (...) a foto é um objeto físico, que pode pegar nas mãos, apalpar, triturar, carregar, dar, esconder, roubar, colecionar, tocar, acariciar, rasgar, queimar, etc. Não raro, existe mesmo uma certa intensidade fetichista nos usos particulares que se pode fazer deste objeto, frequentemente pequeno, pessoal, íntimo, que possuímos e que nos obseda” (p. 60-61).
“É com o cinema que este caráter ´objetal´ da imagem vai se atenuar claramente, até quase desvanecer. Com efeito, a imagem cinematográfica pode ser considerada duplamente imaterial: de um lado, enquanto imagem refletida; de outro, enquanto imagem projetada. (...) podemos até tocar ou atingir a matéria da tela (rasgá-la, manchá-la, cobri-la, arrancá-la, colori-la...), nem por isso conseguiremos atingir a imagem, que permanece, para além de seu suporte material, uma entidade fisicamente distinta, e inacessível às mãos do espectador” (p. 61-62).
A segunda impalpabilidade da imagem cinematográfica é referente á projeção. “... a imagem que o espectador crê ver consiste não apenas num reflexo, como também numa ilusão perceptiva produzida pelo desenrolar da película a 24 imagens por segundo. O movimento representado (de um corpo, um objeto, etc.) , tal como o vemos na tela, não existe efetivamente em nenhuma imagem real. A imagem-movimento é uma espécie de ficção que só existe para nossos olhos e nosso cérebro. Fora daí, ela não é visível – é uma imagem tão imaginada quanto vista, tão subjetiva quanto objetiva. No fundo, a imagem de cinema não existe enquanto objeto ou matéria” (p. 62-63).
“Com a imagem da tela catódica (da televisão e do vídeo), este processo de desmaterialização parece se acentuar ainda mais, e de maneira muito clara. Se a imagem do cinema pode ser dita duplamente imaterial quando a observamos na tela, o espectador não deixa de saber que, na sua base (isto é, no projetor e na cabine), existe uma imagem prévia, ela sim dotada de imaterialidade: o filme-película. (...) Com a imagem eletrônica da televisão e do vídeo, que é também uma imagem-movimento que passa numa tela, esta realidade ´objetal´ de uma imagem material, que seria visível na sua base, desapareceu. Não existe mais imagem-fonte. Não há mais nada pra se ver que seja material (paradoxo de algo intitulado justamente vídeo – ´eu vejo´)” (p. 63).
 “... enquanto o cinema ainda dispunha, em sua base, do elementar fotograma (sua imagem de base ainda era uma imagem), o vídeo não tem nada a oferecer como unidade mínima visível além do ponto de varredura da trama – algo que não pode ser imagem e que nem se quer existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe no espaço, mas apenas no tempo. (...) Sem corpo nem consistência, a imagem eletrônica só serve, poderíamos dizer, para ser transmitida” (p. 64).
“... com os sistemas de imagens ligados à informática e produzidos por computador, o processo de desmaterialização parece atingir seu ponto extremo. Em primeiro lugar, enquanto imagem visualizável numa tela, a imagem de computador é comparável à imagem eletrônica do vídeo (tela fosforescente, varredura de uma trama por um feixe de elétrons etc.). (...) Além disso, antes deste lugar de visualização final que é a máquina da tela, a imagem informática é, como sabemos, uma imagem puramente virtual. Ela se limita a atualizar uma possibilidade de um programa matemático, e se reduz em última análise a um sinal, nem mesmo analógico, mas numérico, ou seja, a uma sequência de algarismos, a uma série de algoritmos. Estamos longe da material-imagem da pintura, do objeto-fetiche da fotografia, e mesmo da imagem-sonho do cinema que vem de um fotograma tamgível. A imagem informática é menos uma imagem que uma abstração. Nem mesmo uma visão do espírito, mas do produto de um cálculo” (p. 64-65).
“Daí provavelmente, como um reflexo compensatório, o desenvolvimento particular neste domínio de tudo que concerne à reconstituição de efeitos de materialidade. Esta parece fazer tanta falta em informática que acaba provocando uma espécie de hipertrofia do tato.” O autor cita então: o controle remoto; o mouse; o teclado; as “telas táteis”. (...) Foi sobretudo nas pesquisas acerca da chamada ´realidade virtual´ que se afirmou esta corrida ruma a uma (falsa) materialidade do tato.” Os capacetes de visão; luvas de dados; e sensores.
“É o triunfo da simulação, em que a impressão de realidade dá lugar a impressão da presença, e o usuário experimente a simulação como um real. Neste universo, não só a imagem perdeu o corpo, como também o próprio real, inteiro, parece ter-se volatilizado, dissolvido, descorporificado numa total abstração sensorial” (p. 66).
“Hipertrofia do ver e do tocar, por parte de um sistema de representação tecnológica que carece cruelmente de ambos, por ter dado as costas ao Real. As telas se acumularam a tal ponte que apagaram o mundo. Elas nos tornaram cegos pensando que poderiam nos fazer ver tudo. Elas nos tornaram insensíveis pensando que poderiam nos fazer sentir tudo” (p. 67).



DUBOIS, Philippe. Máquinas de imagens: uma questão de linha geral. In: DUBOIS, Philippe Cinema, Video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Págs. 31 – 67.

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