domingo, 30 de dezembro de 2012

Máquinas de imagens: uma questão de linha geral

Philippe Dubois

O que são as máquinas semióticas e como elas intermedeiam as nossas relações sociais e as nossas representações de mundo?
As máquinas semióticas (símbolos) são dedicadas à tarefa de representação, com possibilidades para o processamento e produção de signos. Enquanto instrumentos (technè) promovem a intermediação entre o homem e o mundo no processo de construção simbólica.
De acordo com as abordagens desenvolvidas por Dubois (2004), as máquinas, principalmente a partir do século XIX, vão modificar nossa relação com a realidade através de processos de captura, de prefiguração, de organização da nossa visão (câmara escura); de produção de imagens, de inscrição (fotografia); de visualização, recepção do objeto visual, de contemplação (cinematógrafo); de transmissão e difusão de imagens (televisão/vídeo); de síntese, de virtualização da imagem (imagem informática). As máquinas passaram (ainda passam) por uma sequência espiral de evolução, interferindo decisivamente na cadeia de produção da imagem. Essa evolução não representa simplesmente um novo estrato suplementar em cada etapa (momento), formam um “circuito de representação”, em especial com a informática.

“A expressão ´novas tecnologias´ no domínio das imagens nos remete hoje a instrumentos técnicos que vêm da informática e permitem a fabricação de objetos visuais. Uma perspectiva histórica elementar mostra claramente, porém, que não foi preciso esperar o advento do computador para se engendrar imagens sobre bases tecnológicas” (p. 31).
“... o termo technè corresponde estritamente ao sentido aristotélico da palavra arte, que designava não as ´belas-artes´ (acepção moderna da palavra, que surge no século XVIII), mas todo procedimento de fabricação segundo regras determinadas e resultante na produção de objetos belos ou utilitários” (p. 32).
“A technè é então, antes de mais nada, uma arte do fazer humano” (p. 33).
De acordo com Dubois (2004), “produtos tecnológicos”, compreendidos aqui como “máquinas de imagens”, exigem, desde os registros humanos nas cavernas do período paleolítico, dispositivos técnicos de base constituídos de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo).
Analisando parte da linha histórica das tecnologias da imagem, o autor faz uma abordagem de “quatro entre as ´últimas tecnologias´ que surgiram e sucederam de dois séculos para cá e introduziram uma dimensão ´máquinica´ crescente no seu dispositivo, reivindicando sempre uma forma inovadora” (p. 33). São elas: a fotografia; o cinematógrafo; a televisão/vídeo; e a imagem informática.
“Cada uma destas ´máquinas de imagem´ encarna uma tecnologia e se apresenta como uma intervenção de certo modo radical em relação às precedentes. A técnica e a estética nelas se imbricam, dando lugar a ambiguidades e confusões deliberadamente cultivadas, que tentarei deslindar aqui ao máximo” (p. 33).

A Novidade como Efeito de Discurso
De acordo com Dubois, a “novidade” associada à questão da tecnologia funciona como um efeito de linguagem, de tanto ser alardeada em cada momento de forma recorrente como uma “intenção revolucionária”. E que esse discurso de inovação se apoia numa retórica e numa ideologia.
“... todos esses discursos do novo traduzem um hiato completo entre, de um lado, uma ideologia voluntarista da ruptura franca e do progresso cego (que deriva do mais puro intencionalismo) e, de outro, uma realidade dos objetos tecnológicos, que procede do pragmatismo mais elementar. Esse hiato fica patente na constatação de que cada tecnologia produz, na realidade dos fatos, imagens que tendem a funcionar esteticamente quase ao contrário do que pretendem os discursos das intenções (tecnicamente ´revolucionários´)” (p. 35).
O autor apresenta “três fios” que permitem uma abordagem mais precisa de três problemáticas da “estética de representação”, o que possibilita a observação como as diferentes máquinas de imagens das últimas tecnologias tecem variações numa modulação continua de uma a outra. Os eixos, numa concepção “dialética conceitual entre dois polos antagônicos”, são: “maquinismo-humanismo”, “semelhança-dessemelhança” e “materialismo-imaterialidade da imagem” (p. 35-36).

A questão maquinismo-humanismo (o lugar do Real e do Sujeito)
“... a máquina, neste estágio (pensemos na câmara escura, por exemplo), é uma máquina puramente óptica, de pré-figuração, e intervém antes da constituição propriamente dita da imagem (da qual funciona como uma condição previa)” (p. 36).
“São como próteses para o olho, não são operadores de inscrição. Esta, que produz propriamente a imagem, continua se exercendo unicamente pela intervenção gestual do pintor ou desenhista” (p. 37).
“... o que aparece claramente também desde este estágio, é que as máquinas, enquanto instrumento (technè), são intermediários que vêm se inserir entre o homem e o mundo no sistema de construção simbólica que é o princípio mesmo da representação” (p. 38).
“... o advento da imagem fotográfica, no início do século XIX, vai dispor em novo patamar a maquinização da figura, estendendo sua intervenção à segunda fase do processo. A máquina, agora, não se limitará a captar, prefigurar ou organizar a visão (esta fase já está assegurada e não se perderá tão cedo, a câmara escura permanecerá a base de três dos quatro outros sistemas), mas produzirá, justamente, a inscrição propriamente dita.” (p. 38).
“A ´máquina´ intervém aqui, portanto, no coração mesmo do processo de constituição da imagem, que aparece assim como representação quase ´automática´, ´objetiva´, ´sine manu facta´ (acheiro-poiète). O gesto humano passa a ser um gesto mais de condução da máquina do que de figuração direta” (p. 38).
“... à esta tendência à ´desumanização´ do dispositivo de fabricação das imagens, vai se atribuir cada vez mais uma dimensão axiológica, vendo-se nela uma ´perda de artisticidade´” (p. 42).
“... a evolução do maquinico (a história das tecnologias) e o problema do humanismo ou da artisticidade (questão estética) são duas coisas bem diferentes: o desenvolvimento daquela não tem necessariamente como correlato a regressão destes” (p. 43).
“... com o surgimento do cinematógrafo no final do século XIX, o avanço do maquinismo cumpre uma etapa suplementar: desta vez, é uma terceira fase do dispositivo que se tornará ´máquinico´: a fase da visualização. Uma máquina de ordem três vem assim se acrescentar às duas outras. (...) uma máquina de recepção do objeto visual: com efeito, só se pode ver as imagens do cinema por intermédio das máquinas, isto é, no e pelo fenômeno da projeção” (p. 43).
“... se o maquinismo ganha nela um estrato a mais no sistema geral das imagens, isto não resulta numa perda acentuada de aura ou artisticidade. Pelo contrário, podemos mesmo considerar que a maquinaria cinematográfica é em seu conjunto produtora de imaginário (dai provavelmente a singularidade exemplar e a força incomparável do cinema). (...) Sua maquinaria é não só produtora de imagens como também geradora de afetos, e dotada de um fantástico poder sobre o imaginário dos espectadores. A máquina do cinema reintroduz assim o Sujeito na imagem, mas desta vez do lado do espectador e do seu investimento imaginário, não do lado da assinatura do artista” (p. 44).
“... vemos assim que a questão da relação maquinismo-humanismo é menos histórica na progressão contínua (cada vez mais máquina para menos humanidade) do que filosófica na tensão dialética que sempre varia, mas não linearmente. (,,,) A dialética entre estes dois polos, sempre elástica, constitui o aspecto propriamente inventivo dos dispositivos, em que o estético e o tecnológico podem se encontrar” (p. 45).
“... em menos de um século, toda a cadeia de produção da imagem (pré-visão, inscrição, pós-contemplação) se tornou assim progressivamente ´máquinica´, cada nova máquina não suprimindo as precedentes (estamos longe da lógica da tábua rasa), mas vindo se acrescentar a elas, como um estrato tecnológico suplementar, como uma volta a mais numa espiral” (p. 45).
A indústria tecnológica ganhará cada vez mais terreno...
“Com o advento e a instalação progressiva da televisão e depois do vídeo (que se estende por muito tempo, ocupando praticamente toda a primeira metade do século XX), uma espécie de quarto estrato máquinico vem se superpor aos três outros. O que especifica a maquinaria televisual e a transmissão. Uma transmissão a distância, ao vivo e multiplicada” (p. 46).
“A imagens televisual não é algo que se possua como um objeto pessoal nem algo que se projete num espaço fechado (como a ´bolha´ da sala escura do cinema); ela é transmitida para todo lugar ao mesmo tempo. (...) A imagem-tela ao vivo da televisão, que não tem mais nada de souvenir (pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no presente, onde quer que seja. Ela transita, passa por diversas transformações, flui como um rio sem fim” (p. 46).
“... a televisão, no fundo, transformou o espectador – que no anonimato da sala escura tinha ao menos uma forte identidade imaginária – numa espécie de fantasma indiferenciado, de tal modo disseminado na luz do mundo que se tornou totalmente transparente e invisível, e deixou de existir como tal. Agora, ele é no máximo um número, um alvo, uma taxa de audiência: uma onipresença fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência (...) não há mais relação intensiva, só nos resta o extensivo, não há mais Comunhão, só nos resta a Comunicação” (p. 46-47).
“Enfim, depois das maquinarias de projeção e de transmissão, que expandiram no tempo e no espaço a visualização e a difusão da imagem, uma ´última tecnologia´ veio completar a panóplia neste último quarto do século XX, e seu impacto histórico parece (pelo menos) tão importante quanto o das invenções precedentes. Trata-se da imagem informática, também chamada de imagem de síntese, infografia, imagem digital, virtual, etc. A maquinaria que se introduz aqui é extrema. (...) com a imagem informática, pode-se dizer que é o próprio ´Real´ (o referente originário) que se torna maquínico, pois é gerado por computador. (...) Não há mais necessidade destes instrumentos de captação e reprodução, pois de agora em diante o próprio objeto a se ´representar´ pertence à ordem das máquinas. Ele é gerado pelo programa de computador, e não existe fora dele. É o programa que o cria, forja e modela o seu gosto. È uma máquina de ordem cinco (que retoma as outras no seu pondo de origem), não de reprodução, mas de concepção. Até então, os outros sistemas pressupunham todos a existência de um Real em si e para si, exterior e prévio, que cabia às máquinas de imagem reproduzir. Com a imagerie informática, isto não é mais necessário: a própria máquina pode produzir seu ´Real´, que é a sua imagem mesma. Dito de outro modo, os dois extremos do processo (o objeto e a imagem, a fonte e o resultado) se encontram aqui para se tornarem uma coisa só, provocando uma confusão por colisão, uma catástrofe (de acordo com René Thom e sua teoria da catástrofe)” (p. 47).
“O próprio mundo se tornou máquinico, isto é, imagem, como numa espiral insana. A realidade passa a ser chamada de ´virtual´” (p. 48).
“Não só não há mais ´Real` (nem ´representação´ portanto), como também podemos dizer que não haja mais imagens. A chamada imagem de síntese, em certo sentido, não existe: a síntese é apenas um conjunto possível (o programa) cuja atualização visual é um simples acidente, sem objeto real. (...) a síntese não seria assim nada mais do que sonham todos os fotógrafos à espera da Revelação. A única diferença é que, agora, esta imagem virtual não passa de uma das soluções pré-vistas do programa” (p. 48-49).

A questão semelhança-dessemelhança
“Uma outra perspectiva de conjunto sobre a história das máquinas de imagem, uma outra ´linha geral´ que eu gostaria de seguir é a da velha questão da semelhança (e seu reverso: a desemelhança). (...) assim como, à medida que o sistema de imagens se sucediam no tempo, o maquinismo parecia crescer em detrimento             da presença e das intervenções humanas (...) poderíamos pensar, à primeira vista, que o encadeamento das tecnologias da imagem caminhava unilateralmente em um aumento constante do grau de analogia e, portanto, das capacidades de reprodução mimética do mundo, como se cada invenção técnica pretendesse necessariamente aumentar a impressão de realidade da representação. Veremos porem que esta aparente  teleologia também se revela enganosa e que, de fato, a cada momento da história dos dispositivos, a tensão dialética entre semelhança e dessemelhança reaparece – e independentemente dos dados tecnológicos, pois a questão em jogo é estética” (p. 49).
“Com o desenvolvimento espetacular da imagem fotográfica, o ganho de realismo na imagem aparecerá como imediato e todos o proclamarão. (...) À comodidade e à prontidão do procedimento, a fotografia acrescentaria uma terceira vantagem, a ´exatidão´. Precisão dos detalhes, nitidez dos contornos, gradação fiel das cores e, sobretudo, ´verdade das formas´. Em última análise, o ganho de analogia trazido pela fotografia seria de ordem não só óptica, como também (e mais essencialmente) ontológica. Seria uma questão de verdade da imagem” (p. 50).
Houve uma transição de um efeito de realismo, das pinturas, para um efeito de realidade, da fotografia “(da ordem da estética da mimese). Se o primeiro encara os dados em termos de semelhanças, o segundo o faz em termos de existência e de essência. E paradoxalmente, o deslocamento que assim se opera permite concluir que na postura ontológico-fenomenológica, a semelhança deixa de ser um critério pertinente...”  (p. 51).
“Quando o cinematógrafo se instala, um novo ´suplemento de analogia´ imediatamente surge: o realismo cinematográfico          acrescenta ao realismo do vestígio fotoquímico o da reprodução do movimento, que é um realismo do tempo” (...) Mesmo que sob uma forma ilusória, que nos engana com nosso próprio consentimento e prazer, a mimese fílmica expõe o mundo em sua duração e em seus movimentos (p. 51-52).
“... com o circuito eletrônico da imagem do vídeo, não só vemos a imagem do mundo em movimento (tal como ele se move em sua duração própria), como também a vemos ao vivo. É a mimese do ´tempo real´: o tempo eletrônico da imagem é (sincronizado com) o tempo do Real. O realismo da simultaneidade vem se acrescentar ao do movimento para formar uma imagem que nos parece cada vez mais próxima e decalcada no real, a ponto de gerar por vezes confusão” (p. 52).
“Tempo durativo, tempo real, tempo contínuo, a imagem-movimento do cinema e da televisão/vídeo parece assim levar o mimetismo e a reprodução do mundo ao seu extremo, até o absurdo...” (p. 53).
Com a imagem informática: “A partir do momento em que a máquina deixa de reproduzir para gerar seu próprio real (que é a sua imagem mesma), é claro que a relação de semelhança perde um pouco o sentido, pois já não há mais representação nem referente. (...) não é mais a imagem que imita do mundo, é o ´real´ que passa a se assemelhar à imagem, Na verdade, trata-se de uma espiral infinita, uma analogia circular, como uma serpente que morde a própria cauda” (p. 53).
“É provavelmente por isso que a maior parte das imagens de síntese, apesar de poder inventar figuras visuais totalmente inéditas e nunca vistas, esforça-se ao contrário para reproduzir imagens já disponíveis, objetos já conhecido do mundo. Elas apostam na semelhança (mesmo que falseada ou forçada), não tanto para mostrar que podem ´fazer tudo´, mas porque não sabem mais o que fazer (o que seja diferente) (p. 53).
“... a questão da semelhança não é uma questão técnica, mas estéticas. Assim, se o analogismo encontrou nos diversos sistemas de representação anteriormente evocados um terreno aparentemente propício à sua expansão, cabe notar porem que isto concerne apenas a certa forma de figuração – parcial, ainda que semelhante. (...) Toda representação implica sempre, de uma maneira ou de outra, uma dosagem entre semelhança e dessemelhança. E a história estética das máquinas de imagens, esse traçado de linhas gerais, é feita de sutis equilíbrios entre esses dados” (p. 54).
“... a dimensão mimética da imagem corresponde a um problema de ordem estética, e não é sobredeterminada pelo dispositivo tecnológico em si mesmo. Todo dispositivo tecnológico pode, com seus próprios meios, jogar com a dialética entre semelhança e dessemelhança, analogia e desfiguração, forma e informe. A bem da verdade, é exatamente este jogo diferencial e modulável que a condição da verdadeira invenção em matéria de imagem: a invenção essencial é sempre estética e nunca ética” (p. 57).
Podemos dizer que a pintura, a fotografia, o cinema, a televisão são suplementos de analogia. Assim como a informática, mas esta vai além.

A questão materialidade-imaterialidade
“... de início poderíamos ver aqui também uma progressão quase contínua e unilateral, na sucessão dos sistemas, de uma desmaterialização crescente da imagem, que se tornaria cada vez mais ´objetal´ e mais ´virtual´. (...) Veremos, porem, mais uma vez que este esquema teleológico é extremamente redutor e que devemos absolutamente dialetizá-lo, evitando a confusão entre os terrenos estéticos e tecnológicos. (...) a imagem da pintura é, entre as que nos ocupam aqui, aquela cuja materialidade é mais diretamente sensível. (...) Para que quer que tenha não só visto, mas também tocado um tela com a mão, sentido sua espessura e sua consistência, sua lisura ou sua rugosidade, não há dúvida: a pintura atinge um extremo de materialidade concreta, tátil, literalmente papável. (...) Comparativamente, a imagem fotográfica, objeto múltiplo ou ao menos reprodutível, possui certamente menos relevo e menos corpo. Sua tactilidade é uma questão não tanto de material figural quanto de objectualidade figurativa. (...) a foto é um objeto físico, que pode pegar nas mãos, apalpar, triturar, carregar, dar, esconder, roubar, colecionar, tocar, acariciar, rasgar, queimar, etc. Não raro, existe mesmo uma certa intensidade fetichista nos usos particulares que se pode fazer deste objeto, frequentemente pequeno, pessoal, íntimo, que possuímos e que nos obseda” (p. 60-61).
“É com o cinema que este caráter ´objetal´ da imagem vai se atenuar claramente, até quase desvanecer. Com efeito, a imagem cinematográfica pode ser considerada duplamente imaterial: de um lado, enquanto imagem refletida; de outro, enquanto imagem projetada. (...) podemos até tocar ou atingir a matéria da tela (rasgá-la, manchá-la, cobri-la, arrancá-la, colori-la...), nem por isso conseguiremos atingir a imagem, que permanece, para além de seu suporte material, uma entidade fisicamente distinta, e inacessível às mãos do espectador” (p. 61-62).
A segunda impalpabilidade da imagem cinematográfica é referente á projeção. “... a imagem que o espectador crê ver consiste não apenas num reflexo, como também numa ilusão perceptiva produzida pelo desenrolar da película a 24 imagens por segundo. O movimento representado (de um corpo, um objeto, etc.) , tal como o vemos na tela, não existe efetivamente em nenhuma imagem real. A imagem-movimento é uma espécie de ficção que só existe para nossos olhos e nosso cérebro. Fora daí, ela não é visível – é uma imagem tão imaginada quanto vista, tão subjetiva quanto objetiva. No fundo, a imagem de cinema não existe enquanto objeto ou matéria” (p. 62-63).
“Com a imagem da tela catódica (da televisão e do vídeo), este processo de desmaterialização parece se acentuar ainda mais, e de maneira muito clara. Se a imagem do cinema pode ser dita duplamente imaterial quando a observamos na tela, o espectador não deixa de saber que, na sua base (isto é, no projetor e na cabine), existe uma imagem prévia, ela sim dotada de imaterialidade: o filme-película. (...) Com a imagem eletrônica da televisão e do vídeo, que é também uma imagem-movimento que passa numa tela, esta realidade ´objetal´ de uma imagem material, que seria visível na sua base, desapareceu. Não existe mais imagem-fonte. Não há mais nada pra se ver que seja material (paradoxo de algo intitulado justamente vídeo – ´eu vejo´)” (p. 63).
 “... enquanto o cinema ainda dispunha, em sua base, do elementar fotograma (sua imagem de base ainda era uma imagem), o vídeo não tem nada a oferecer como unidade mínima visível além do ponto de varredura da trama – algo que não pode ser imagem e que nem se quer existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe no espaço, mas apenas no tempo. (...) Sem corpo nem consistência, a imagem eletrônica só serve, poderíamos dizer, para ser transmitida” (p. 64).
“... com os sistemas de imagens ligados à informática e produzidos por computador, o processo de desmaterialização parece atingir seu ponto extremo. Em primeiro lugar, enquanto imagem visualizável numa tela, a imagem de computador é comparável à imagem eletrônica do vídeo (tela fosforescente, varredura de uma trama por um feixe de elétrons etc.). (...) Além disso, antes deste lugar de visualização final que é a máquina da tela, a imagem informática é, como sabemos, uma imagem puramente virtual. Ela se limita a atualizar uma possibilidade de um programa matemático, e se reduz em última análise a um sinal, nem mesmo analógico, mas numérico, ou seja, a uma sequência de algarismos, a uma série de algoritmos. Estamos longe da material-imagem da pintura, do objeto-fetiche da fotografia, e mesmo da imagem-sonho do cinema que vem de um fotograma tamgível. A imagem informática é menos uma imagem que uma abstração. Nem mesmo uma visão do espírito, mas do produto de um cálculo” (p. 64-65).
“Daí provavelmente, como um reflexo compensatório, o desenvolvimento particular neste domínio de tudo que concerne à reconstituição de efeitos de materialidade. Esta parece fazer tanta falta em informática que acaba provocando uma espécie de hipertrofia do tato.” O autor cita então: o controle remoto; o mouse; o teclado; as “telas táteis”. (...) Foi sobretudo nas pesquisas acerca da chamada ´realidade virtual´ que se afirmou esta corrida ruma a uma (falsa) materialidade do tato.” Os capacetes de visão; luvas de dados; e sensores.
“É o triunfo da simulação, em que a impressão de realidade dá lugar a impressão da presença, e o usuário experimente a simulação como um real. Neste universo, não só a imagem perdeu o corpo, como também o próprio real, inteiro, parece ter-se volatilizado, dissolvido, descorporificado numa total abstração sensorial” (p. 66).
“Hipertrofia do ver e do tocar, por parte de um sistema de representação tecnológica que carece cruelmente de ambos, por ter dado as costas ao Real. As telas se acumularam a tal ponte que apagaram o mundo. Elas nos tornaram cegos pensando que poderiam nos fazer ver tudo. Elas nos tornaram insensíveis pensando que poderiam nos fazer sentir tudo” (p. 67).



DUBOIS, Philippe. Máquinas de imagens: uma questão de linha geral. In: DUBOIS, Philippe Cinema, Video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Págs. 31 – 67.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Culturas e Artes do Pós-Humano


Lúcia Santaella

1.    Qual é a relação entre a seguinte passagem do texto de Santaella e o conceito de arte tecnológica exposto no texto de Martin Heidegger “The question concerning technology”?

“Nessa medida, a arte tecnológica se dá quando o artista produz sua obra através da mediação de dispositivos maquínicos, dispositivos estes que materializam um conhecimento científico, isto é, que já têm uma certa inteligência corporificada neles mesmos.”

A diferença apresentada por Heidegger entre a técnica pré-industrial e a técnica moderna, também entendida como tecnologia, está na presença do conhecimento científico nesta última. Ou seja, a tecnologia está fundamentada na ciência moderna, tem como base os avanços das ciências originários no século XVII. Dessa forma, o desvelamento da verdade (poiesis) como uma forma de existência do homem no mundo potencializada pela técnica, apresenta-se, após a revolução industrial, com base no conhecimento científico, na capacidade de ampliação da ação e produção do homem.

A arte tecnológica ocorre a partir da fusão da técnica com a ciência. Conforme a passagem do texto de Santaella, e considerando a afirmação de Machado sobre as relações cada vez mais estreitas entre imaginação artística, investigação científica e invenção tecno-industrial, podemos inferir que a partir do momento em que o artista compreende e busca amplificar a “inteligência corporificada” atribuída por Santaella aos dispositivos máquinicos, que são utilizados nos processos de criação (elaboração e produção) artística, a arte pode ser entendida como uma possível saída do processo de “Gestell”.

“(...) a arte produzida no coração das mídias e das tecnologias colocam os artistas no centro das engrenagens de poder, ao mesmo tempo em que afetam diretamente os modos de produzir e consumir, de comunicar e controlar da sociedade como um todo. Aquele que hoje se propõem exercitar o imaginário a partir de instrumentos, processos e suportes colocados pelas tecnologias de ponta devem estar preparados para enfrentar as regras de mercado, as instituições de controle e gerenciamento de recursos; devem também saber exatamente até onde podem ceder ou abrir mão de sua liberdade, sem comprometer a radicalidade de suas propostas” (MACHADO, 1993, p. 32).

Heidegger indaga sobre a importância ou possibilidade de não tratarmos a técnica como mero meio, alertando para o fato de que não está errado tratá-la como determinação instrumental, mas ainda que seja correta a determinação instrumental da técnica, isso não nos mostra sua essência - ou a verdade.
  

domingo, 23 de dezembro de 2012

Máquina e Imaginário


Arlindo Machado
 1.    O que o autor define como as estéticas informacionais?
Visavam construir modelos matemáticos rigorosos, capazes de avaliar a informação estética contida num objetivo dotado de qualidades artísticas. Tinha como meta aplicar à produção artística princípios formulados na confluência da teoria da informação com a cibernética.

2.    Em que sentido o autor aplica o mesmo raciocínio de Walter Benjamin sobre a fotografia e o cinema em relação à arte produzida com recursos tecnológicos?
Que o importante é perceber que a existência das obras a partir do uso dos novos recursos tecnológicos colocam em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo novas formulações diante das transformações que estão ocorrendo, de uma nova situação.
 “As novas tecnologias introduzem diferentes problemas de representação, abalam antigas certezas no plano epistemológico e exigem a reformulação de conceitos estéticos” (p. 24).

3.    Comente as seguintes passagens a respeito da relação da arte com a tecnologia:
“Podemos considerar a relação da arte com a tecnologia como um casamento marcado por períodos de harmonia e de crises conjugais” (P. 24).
O autor faz referências à concepção grega da arte vinculada à palavra téchne, de tecnologia, que representa qualquer prática produtiva sem distinção entre arte e técnica, o que perdurou até o período renascentista.  As atividades artísticas estavam estreitamente relacionadas aos avanços científicos no Renascimento. Diversos artistas adotavam e desenvolviam princípios com base na matemática e na física, por exemplo, para realizarem seus trabalhos, que não ficavam restritos a pinturas e esculturas. “... a máquina torna-se modelo conceitual para explicar e representar o universo físico natural” (p. 25).
O autor argumenta que a arte do século XX encontra-se em sintonia com os saberes e questões do seu tempo, assim como no período da arte grega, fazendo referências a diversos movimentos artísticos do início do século passado.
Machado afirma que: “Exposições recentes dedicadas ao tema das relações entre arte e tecnologia (...) demonstraram que se torna cada vez mais difícil fazer uma distinção categórica entre objetos originários da imaginação artística, da investigação científica e da invenção tecno-industrial” (p. 25).
E acrescenta apontando para o fato de que importantes centros de pesquisa estética na contemporaneidade são localizados em institutos de pesquisa tecnológica ou científica.
No entanto, o “divorcio” ocorreu no Romantismo, com os conceitos de genialidade individual e o papel do imaginário na arte. A partir desse conflito a arte torna-se autônoma e institucionalizada, o que deu início ao processo de especialização durante o século XVIII e foi fundamental para definir o novo “contrato matrimonial entre arte e tecnologia”, onde passam a ser partes distintas. A adoção de uma “postura sem submissão e sem papeis fixados na relação” foi a grande contribuição do romantismo para a arte em relação às tecnologias.

“Toda arte produzida no coração da tecnologia vive, portanto, um paradoxo e deve não propriamente resolver essa contradição, mas pô-la a trabalhar como um elemento formativo” (p. 28).
A arte não precisa e não pode ficar sujeita a procedimentos de padronização, de ordenamentos precisos e sem improvisação. “A arte é indiferente a qualquer tecnologia”, se alimenta e se realiza em processos de liberdade do imaginário, de certo grau de imprevisibilidade e ludicidade, de muita criatividade e autenticidade.
“(...) a arte produzida no coração das mídias e das tecnologias colocam os artistas no centro das engrenagens de poder, ao mesmo tempo em que afetam diretamente os modos de produzir e consumir, de comunicar e controlar da sociedade como um todo. Aquele que hoje se propõem exercitar o imaginário a partir de instrumentos, processos e suportes colocados pelas tecnologias de ponta devem estar preparados para enfrentar as regras de mercado, as instituições de controle e gerenciamento de recursos; devem também saber exatamente até onde podem ceder ou abrir mão de sua liberdade, sem comprometer a radicalidade de suas propostas. Em contrapartida, sua arte, longe de se confinar em museus, galerias ou salas de concerto, se fará penetrar em todos os lugares, difundindo-se por ondas eletromagnéticas ou por cabos telefônicos e ampliando ao infinito através dos satélites de comunicação. Pode-se dizer que essa arte tende a perder em concentração, estilo e refinamento, o que, por outro lado, ganha em amplitude, penetração e alcance social.” (p. 32)

4.    Comente o pensamento de Villém Flusser sobre o papel do artista na era das máquinas que foi exposto pelo autor:

O termo “funcionário da transmissão”, usado por Flusser sobre o papel do artista na “era da automação”, de certa forma, e como também está sendo tratado no texto, não fica restrito a esse período de desenvolvimento e apropriações intensas das tecnologias. No momento em que o artista é “contratado” ou recebe uma encomenda, por exemplo, na maioria das vezes sua criação fica restrita a um propósito ou contexto específico, são impostas limitações à sua criação. Ainda assim o artista lança mão de sua autonomia e de sua capacidade criadora e técnica para se expressar, mesmo diante dessas condições. E essas limitações  que podem ser diversas, por exemplo, tanto em relação aos instrumentos ou recursos disponíveis como em relação ao tema ou condições específicas, não impossibilitam o trabalho artístico.
Acredito que os artistas, e em grande medida os cientistas, sempre se apresentaram como os responsáveis (direta ou indiretamente) por vislumbrar novas possibilidades ou apontar novos caminhos. Desenvolvem seus trabalhos considerando não somente as perspectivas que se apresentam de forma objetiva e que estão postas ou impostas, buscam o que está além, o devir. Nesse sentido, independente do contexto atual, de certa necessidade de utilização de recursos tecnológicos e das condições impostas pelo sistema complexo de desenvolvimento no processo de criação artístico, o artista continua sendo (talvez de forma mais acentuada e em condições mais adversas) fundamental no processo de transgressão e exercício de liberdade, de vislumbrar novas possibilidades.

5.    A partir da leitura da seguinte passagem, discuta como o paradoxo mencionado na questão 3 está relacionado com o papel do artista.
“Sem a intervenção desse imaginário radical, as máquinas sucumbem nas mãos dos funcionários da produção, que não fazem senão preenchê-las com “conteúdos” de mídias anteriores, repetindo em linguagens novas soluções já cristalizadas em linguagens mais antigas” (p.28).
Que diante dessas mudanças, da intensificação e mesmo imposição no uso das novas tecnologias, é fundamental o desenvolvimento de projetos culturais e estéticos que ampliem as possibilidades dos novos meios para propor e enriquecer o universo cultural. Não podemos ficar restritos ou submissos aos aspectos simplesmente técnicos dos equipamentos, assim como das constantes “novas” descobertas tecnológicas. E os artistas podem ser decisivos nos processos de criação e novas formas de percepção do mundo a partir desses avanços (ainda que sujeitos às imposições da indústria, dos dispositivos tecnológicos e do mercado).

6.     O que seriam as máquinas semióticas defendidas pelo autor?
São máquinas dedicadas á tarefa de representação.

7.    O autor aponta pelo menos duas limitações que comprometem a argumentação dos críticos da fusão arte/tecnologia. (p.36) Explique cada uma delas:
Primeira: a crítica aos determinismos da máquina pode ser aplicada a qualquer processo cultural de qualquer tempo. Os artistas sempre estiveram sujeitos, em certa medida, às determinações de sua matéria e às possibilidades de uso de seus instrumentos de trabalho.
Segunda: nem o mais fechado dos sistemas simbólicos pode ser reduzido à medida e determinações de possibilidades. As limitações de manipulabilidades são constatações teóricas, que podem na prática ser expandidas. A imaginação do homem, que cria, desenvolve e usa as máquinas, jamais será passível de restrições ou poderá ser quantificada.

8.    Explique as mudanças ocorridas com a arte tecnológica no que diz respeito ao papel desempenhado pelo autor na criação artística (p.33-44).
As máquinas desempenham um papel fundamental na atividade simbólica do homem contemporâneo, que pode ser mais ampla que as formas de utilização normalmente praticadas.
A evolução técnica não pode ser entendida (ou vista) simplesmente como redutora do campo da criatividade estética e que a máquina (e seus construtores) impõem limites intransponíveis à liberdade de criação artística. Existem, em grande quantidade, os “apertadores de botão” ou “funcionários da transmissão”, que não fazem mais que cumprir e celebrar as promessas das máquinas e as finalidades do sistema industrial. Que os “produtos” desses supostos “artistas” são frutos muito mais das tecnologias das máquinas e dos processos produtivos do que do talento e da capacidade criadora.
No entanto, não se pode afirmar que o artista está condenado ás imposições e limitações das tecnologias.
“A questão principal, enfim, não é saber se o artista se torna menos ou mais livre, menos ou mais criativo trabalhando no coração das máquinas, mas se ele é capaz de recolocar as questões da liberdade e da criatividade no contexto de uma sociedade cada vez mais informatizada, cada vez mais imersa nas redes de telecomunicações e cada vez mais determinada pelas representações que faz de si mesmo através da indústria cultural” (p. 38-39).

9.    Comente as mudanças no estatuto do receptor com o surgimento da arte tecnológica a partir da seguinte passagem:
 “A recepção é, portanto incorporada ao circuito produtivo como um mecanismo de diálogo, responsável pela consistência do produto final em cada uma de suas infinitas manifestações” (p. 40).
Talvez a obra de arte de todos os tempos tivesse como condição subjacente não somente a criação artística individual, mas uma operação dialógica que participam diversos agentes e fatores, e que, de certa forma, o envolvimento dos “receptores de produtos culturais”, ou, de forma talvez inadequada, dos espectadores, sempre foi parte integrante e fundamental para a manifestação artística. Um fator de grande relevância nos artefatos artísticos provenientes dos recursos tecnológicos na contemporaneidade é, sem dúvida, o receptor. “Componente” incluído no processo de produção artística para a efetiva “conclusão” (ou execução e realização) da obra, ou seja, a figura do espectador passivo e observador dá lugar ao “espectador-autor” para a efetivação do artefato artístico. A experiência que o artista e o “espectador” (agora participante) vivenciam juntos com a obra de arte seria um pressuposto na Arte Digital, o que está inserido nas definições e atributos da media art, assim como a utilização das novas tecnologias.
Se a arte até certo momento privilegiou uma postura quase que simplesmente contemplativa tanto do artista como do público, os movimentos de busca por novas formas de manifestação e expressão a partir do final do século XIX - mas principalmente no início do século XX - incitaram ou promoveram criações que estivessem voltadas para a nossa capacidade reflexiva, indagadora, cognitiva e participativa. O que, até certo ponto, possibilitou a ampliação do sentido de arte, das produções artísticas que surgiram a partir de então, especialmente em conexão com os avanços tecnológicos.
Acredito que o posicionamento de Lygia Clark, em meados nos anos de 1960, sobre o papel do artista, considerando as transformações dos movimentos e conceitos que ela vivenciara de forma teórica e prática como artista, traduz em grande parte o que seria a Arte Digital, ou seja, dar ao participante (que era até então somente observador) um papel fundamental no objeto de arte, o objeto só passa a ser importante com o envolvimento do participante, que será, então, um “espectador-autor”.

MACHADO, Arlindo. “Máquina e Imaginário”, in Machado, Arlindo (1993). Máquina e Imaginário: O desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A CRÍTICA DA TÉCNICA E DA MODERNIDADE EM HEIDEGGER E MCLUHAN


José Carlos Vasconcelos e Sá

No artigo “A Crítica da Técnica e da Modernidade em Heidegger e McLuhan”, José Carlos Vasconcelos e Sá faz uma análise das teorias de Haidegger e McLuchan acerca da modernidade e da instrumentalidade da técnica, especialmente envolvendo a comunicação mediada pelas tecnologias. Trata-se de teorias críticas apresentadas por dois autores de grande notoriedade abrangendo os problemas provenientes de uma concepção e de uma utilização equivocadas dos aspectos envolvendo as tecnologias na modernidade.

“A experiência da modernidade é inseparável do esforço para reconceptualizar a lógica de mediação das relações entre os seres humanos e a natureza e entre a natureza e os objectos que os seres humanos produzem. (...)o. A procura de figuras da mediação é, assim, sinônimo da procura de um caminho, de uma orientação que permita estruturar e estabilizar visões do mundo organizadoras da experiência.” (p. 124)
“Para alguns, as ‘máquinas de comunicar’ seriam um mero suporte da interacção, constituindo um conjunto de instrumentos que não se distinguiriam das utensilagens pré-modernas. (...) O postulado desta tese é a ideia  de  que  a  mediação  constitui  ainda  um  sector  bem  definido entre  sujeitos  mediados  por  tecnologias.  Por  outro  lado,  é  neste mesmo pressuposto que se baseia a opinião, amplamente difundida, de que a mediação é equivalente à linguagem.” (p. 125)
“No entanto, a mediação pela palavra - que emerge, agora, como uma palavra ‘razoável’, dialogante, integrada numa ‘lógica do preferível’, geradora de consensos - obscurece uma outra realidade que marca decisivamente as sociedades tardo-modernas: a questão da tecnologia.” (p. 125)
O autor argumenta que a tecnologia é frequentemente concebida como neutra e como passível de controle pelo sujeito. No entanto alerta para o fato se tratar de uma tecnologização da comunicação, que nos escapa ao controle e impõe novas formas de mediação, num processo de “maquinação do sujeito”. Essa falta de entendimento, que seria inevitavelmente uma forma de instrumentalidade da técnica, pode resultar na incapacidade de exploração de possibilidades.

HEIDEGGER: ‘A ESSÊNCIA DA TÉCNICA NÃO TEM ABSOLUTAMENTE NADA DE TÉCNICO’
De acordo com José Sá, Heidegger é um dos principais pensadores do século XX que insistiu na importância da técnica para a compreensão da modernidade, e que sua formulação mais completa se encontra no texto de 1954 intitulado ‘A Questão da Técnica’ (Heidegger 1958: 9-48).
“A sua tese essencial é a de que a metafísica levou ao esquecimento do Ser e, correlativamente, que a metafísica realizada  é  a  modernidade.  A  interrogação  da  tecnologia  em Heidegger provém, assim e de forma intrínseca, da crítica da modernidade, a partir do ponto de vista ontológico.” (p. 126)
“A ênfase da crítica heideggeriana é a recusa da visão instrumental da tecnologia, isto é, a tecnologia como um meio neutral de que se serviriam os seres humanos para transformarem o mundo - o que implica uma crítica paralela de uma visão do mundo como uma espécie de matéria prima do trabalho que age sobre ele com os seus instrumentos, transformando-o.” (p. 126)
Para Heidegger, segundo José Sá, a técnica deve ser concebida como uma forma de aletheia, de verdade. “A essência da tecnologia moderna deve ser percebida como um processo de des-ocultação da natureza com um carácter especial de provocação relativamente a ela.” (p. 126)
Heidegger estabelece dois tipos de tecnologia:
1) “A tecnologia anterior à Revolução Industrial, profundamente envolvida com a natureza e servindo-se da natureza, mas essencialmente dependendo dela, no sentido de que da natureza só transfere força e movimento” (p. 126-127). Heidegger cita como exemplo os moinhos de vento como um tipo de tecnologia que envolve e coopera com a natureza.
2) “Em contraste marcante com o modelo tecnológico anterior, surge, com a Revolução Industrial, uma prática e concepção tecnológica substancialmente diferente. (...) A tecnologia moderna, regida por processos que se relacionam com a descoberta, transformação, acumulação e distribuição, constitui, assim, um modo de desocultamento substancialmente diferente daquele dominante nas tecnologias pré-industriais” (p. 127). O exemplo desta vez é a central térmica movida a carvão, que ao contrário do modelo anterior, extrai energias físicas básicas e imediatamente as acumula em abstrato, de forma não sensível. Neste caso específico, de forma distinta à exploração da natureza, a energia acumulada é extraída em forma de carvão, que é transformada em eletricidade, que pode ser rearmazenada e preparada para ser distribuída e usada segundo a vontade humana. Heidegger ainda apresenta uma crítica da estética, que para ele é inseparável da crítica da técnica, sendo a arte uma forma de aletheia também. “O exemplo que fornece é o da central eléctrica que não se harmoniza nem complementa a paisagem, perdendo, assim, a característica que aproximava os objectos tecnológicos ‘antigos’ das obras de arte.” (p. 127)
A “moderna tecnologia”, nesse entendimento de Heidegger, gera um mundo de objetos sem valor em si, a não ser pelo uso que se lhes possa dar, o que ele chama de bestand. O que resulta em uma distinção em relação ao processo técnico tradicional, que fabricava objetos únicos.
O autônomo relativamente ao humano, denominado de Gestell, a pré-condição transcendental da tecnologia, é a concepção de Heidegger da essência da tecnologia. Seria a “dimensão da tecnologia moderna que ordena ou rege o modo particular deste desocultamento” (p. 127).
“Esta disposição é entendida como uma estrutura cognitiva impessoal ou uma vontade impessoal que não só provoca o mundo, mas, também e essencialmente, incita os seres humanos, de maneira sistemática, precisa e constante, a provocar o mundo. A acção desta vontade impessoal desoculta sempre, da mesma forma, a natureza” (p. 128).
Disso resulta a visão forte de Heidegger entre tecnologia e Ser: “o desaparecimento do desocultamento em si acarreta, juntamente, o desaparecimento daquele no qual a verdade acontece, isto é, o próprio Ser. O processo de desocultamento da tecnologia é o movimento que leva a ‘fechar’ a natureza no mesmo e, simultaneamente, ao iludir a verdade das coisas, obrigar o Ser à sua não-revelação” (p. 128).
Heidegger procura demonstrar o equívoco da filosofia ocidental em considerar a técnica como algo neutro e passível de controle.
No entanto, como alerta José Sá, “... algumas reservas têm vindo a ser levantadas a esta análise, dizendo respeito, nomeadamente, à exclusividade da visão ontológica em detrimento da dimensão antropológica. Por exemplo, para Dominique Bourg (1999), o menosprezo das realidades empíricas e sociais - que considera patente na análise heideggeriana - tem consequências  marcantes, em particular consequências políticas.” (p; 128).
Mas Heidegger mantêm-se atual no cenário analítico contemporâneo em relação à técnica e à cultura, em que “a técnica não pode ser simplesmente apreendida do ponto de vista do controle e da instrumentalidade” (p. 129).

McLUHAN: ‘O MEIO É A MENSAGEM’
Em Marshall McLuhan, a crítica da técnica e da modernidade parte da análise dos mass media e das relações destes com as mensagens que veiculam.
“A proposição fundamental do pensamento teórico de McLuhan é que os media sobredeterminam a palavra e o seu sentido. Esta é a tese por detrás da formulação, hoje proverbial, ‘The media is the message’, que se tornou um lugar comum interpretativo da cultura de massas” (p.129). Mas para José Sá a teoria de McLuhan merece novos olhares críticos.
O autor destaca que existem diferenças entre a teoria de McLuhan e a de Heidegger, onde o primeiro teve a influência dos estudos literários e da teoria da comunicação. MaLuhan desenvolveu estudos sobre Chesterton, e através dele que “... se envolve na análise crítica do movimento moderno representado por Joyce, Pound, Elliot, entre outros, com os quais partilha a mesma visão do mundo que podemos sintetizar como sendo inerentemente crítica em relação ao positivismo e ao cientificismo dominantes, posição que vai determinar a sua recusa da ideia de progresso exclusivamente orientada pelo desenvolvimento técnico” (p. 130).
Porém, como adverte José Sá, da mesma forma que a técnica é recriminada, também é “objeto” de fascínio, é vista como um instrumento que pode dignificar a existência humana, o que resulta em uma relação ambígua entre técnica e mística, progresso e sentimento. “... assim, na primeira fase da carreira intelectual de McLuhuan, uma nítida posição crítica em relação à tecnologia e à ciência que o século XX, pelo menos na primeira metade, veio a desenvolver (...) McLuhan pertence àquela constelação de pensadores modernos que mantêm relativamente à tecnologia uma relação de fascínio ambíguo que nunca permite um distanciamento definitivo.” (p. 130).
A partir de uma análise sistemática de Allan Poe, “... McLuhan acaba por repudiar as atitudes simplificadas de indignação ou de recusa, em favor da vigilância produtiva face à técnica” (p. 131).
“Esta viragem crítica está bem patente, na fase seguinte, num dos seus primeiros estudos sobre a comunicação de massas – The Mechanical Bride. É a partir deste texto que McLuhan passa a reconhecer que a cultura de massa está não apenas cheia de potencialidades de destruição, mas também de promessas de fecundos  desenvolvimentos” (p. 131)
McLuhan desenvolve estudos sobre os anúncios de publicidades fazendo considerações em relação à arte de vanguarda.
“...a reapreciação da cultura pop levou McLuhan a elaborar um conjunto de teses, segundo as quais os processos comunicacionais estariam estreitamente ligados às tecnologias dominantes em cada época” (p. 132). Com influência direta, especialmente, de Harold Innis, que era economista canadiano responsável pela tese segundo a qual a principal força de transformação social poderia ser encontrada nas várias revoluções que haviam ocorrido nas tecnologias e, especialmente, nas tecnologias da comunicação.
A partir dessa perspectiva, McLuhan formula a hipótese que iria desenvolver na sua investigação sobre os media. “Os meios de comunicação afectam a experiência e, através dela, toda a cultura, mais profundamente que as mensagens” (p. 132).
“McLuhan articulou uma série de questões que constituem os aspectos centrais da análise que levou a cabo sobre os media, a saber: de que maneira os meios de comunicação influenciam as mensagens? Que aspectos do humano são afectados pelos meios de comunicação? Que relação existe entre os media e o homem? Por que razão determinadas épocas legitimam certos meios e não outros?” (p. 132)
As respostas para essas perguntas fizeram de McLuhan um autor incontornável da cultura da segunda metade do século XX, articulando de modo original, comunicação, mediação, tecnologia e cultura. O que fez “... corresponder a cada época histórica um meio cultural de comunicação específico, distinguindo uma série de categorias, das quais podem ser destacadas três dimensões ou conjuntos históricos, técnicos e comunicacionais” (p. 132):
1) “A Dicotomia Oral/Escrito” – para McLuhan, o encantamento imaginativo proveniente das trocas orais foi quebrado com a invenção da escrita, pois o canal da audição é mais rico que o da visão.
2) “O Surgimento dos Tipos Móveis – A Imprensa” – com a imprensa mecanizada, de acordo com McLuhan, o empobrecimento provocado pela escrita aumentou. A orquestração sensitiva da tradição oral se perde ao ser substituída pela linearidade das letras impressas e a regularidade da página. “... o sujeito fechou o seu espírito a possibilidades mais amplas de expressão imaginativa. (...) o sujeito moderno condiciona-se a aceitar, inadvertidamente, a tirania desumanizadora da vida mecânica” (p. 133).
3) “A Era Electrónica” – numa visão otimista, McLuhan concebe a era electrónica como algo que permite aos seres humanos pensar em conjunto, “através de um meio tecnológico constituído à sua imagem e semelhança. A rede electrónica voltou, desta forma, a tribalizar o homem moderno, dominou as influências desintegradoras da imprensa e recolocou o humano na dimensão da ‘aldeia global’” (p. 134).
No entanto, “McLuhan foi atacado severamente por muitos, insistindo os críticos na sua unilateralidade, ingenuidade ou excessiva simplificação” (p. 134).
“... a questão importante que interessa compreender é que a mediação se tornou uma dimensão crucial na cultura tardo-moderna da comunicação e da informação, abrindo um campo vasto, acerca do qual McLuhan foi, sob alguns aspectos pelo menos, o pioneiro teórico. Pesou, neste esforço, a ideia fundamental segundo a qual ‘o meio é a mensagem’ e que, bem vistas as coisas, vai à revelia de tudo o que é normalmente aceite na cultura moderna” (p. 134).
Dessa forma, a crítica da técnica e da modernidade, em McLuhan, implica que o conteúdo da mensagem é irremediavelmente modelado pelo meio pelo qual a mensagem é difundida.
Para McLuhan, a mediação é fundamental na cultura moderna. “Se vivemos apenas no ‘meio’, a nostalgia das origens e os projectos finais têm de ser reinterpretados. Não estão nem aquém, nem além do espaço da mediação, sendo sim uma figuração estratégica dela própria” (p 134).
José Sá então cita Régis Debray (1991, 1995) como uma dos principais autores contemporâneos envolvidos com as questões da mediação, que procura delimitar uma teoria da “mediologia”. Nos chama a atenção para o fato de não confundir a mediação com os media, enquanto máquinas de comunicar. Nesse sentido, é necessário analisar como uma ideia se torna força material pelas mediações, os ‘media’ como um prolongamento “particular, tardio e intrusivo”.
“Para Debray, ela entra mesmo em catástrofe com o crescente peso da imagem, na qual se encadeia directamente o desejo, abolindo toda a distância. Esta visão é abundantemente ilustrada pela imagem do ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque, difundidas até à exaustão pelas cadeias de televisão de todo o mundo. Como diz Debray (1995: 192): ‘O ícone é um objecto amável e dinamizante, a feminitude da imagem e a guerra das imagens devem ser consideradas – ou se perdem – juntas’” (p. 135).
“A articulação entre as práticas críticas de Heidegger e McLuhan pode ser enfatizada, em particular, nesta necessidade de libertar a mediação das formas tecnológicas tradicionais que, tal como as formas clássicas de análise crítica, já entraram em crise. A resposta a dar à cultura passa pelo reconhecimento, como disse, em algum lugar, G. Agamben, de que tudo se joga ‘em exibir uma medialidade, em tornar visível um meio como tal’, o que passa por ir além da instrumentalidade e da ilusão de controle” (p. 136).
“A reunião dos pensamentos de Martin Heidegger e Marshall McLuhan nesta análise é, assim, destinada a tornar visíveis as correlações analíticas entre a afirmação da autonomia da técnica sobre a criação (Heidegger) e da autonomia do meio sobre a mensagem (McLuhan). Ambas as posições são investidas numa crítica da visão predominante da instrumentalidade ou da natureza  puramente instrumental da técnica. Estas questões são orientadas para o modo como a superação da visão instrumentalista afecta a relação entre mediação, comunicação e cultura. Se esta realidade já era clara na época dos mass media e de McLuhan, é hoje  incontornável, na disseminação das culturas virtuais e do ciberespaço” (p. 137).

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA


Walter Benjamin

“A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutividade Técnica” foi escrito entre os anos de 1935 e 1936, traz uma série de questões acerca dos aspectos e mudanças envolvendo a arte no início do século XX. A “reprodutibilidade técnica” seria a entrada do processo industrial na produção artística.
Walter Benjamin trata de forma específica do cinema e da fotografia como obra de arte, sobre como a “máquina” interfere diretamente na expressão do artista, assim como em sua exposição. Apresenta contrapontos sobre as novas formas de produção e reprodução em relação à pintura e ao teatro. O autor apresenta o “aqui e agora” como a unidade da obra arte, que ele chama de aura, como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais. “O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade.” A reprodutibilidade técnica, na concepção de Benjamin, tira da obra de arte sua aura.
Como a “máquina”, e outros elementos, interferem diretamente na produção de um filme ou de uma fotografia, caberia questionar se podem ser considerados obra de arte. Várias considerações teórico-filosóficas e históricas são apresentadas por Benjamin sobre os entendimentos e concepções de arte, estética e outros aspectos envolvendo a arte.
A reprodutibilidade técnica apresenta, na concepção de Benjamin, um lado positivo, a possibilidade de democratização da arte com a disponibilização da obra para um maior número de pessoas.
Esse fichamento, considerando as parte mais relevantes do texto, foi realizado para que possa ser utilizado na elaboração de futuros trabalhos.

I
“Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pode ser imitado por homens.” (p. 75)
“Em oposição a isto, a reprodutibilidade técnica da obra de arte é algo de novo que se vai impondo, intermitentemente na história, em fases muito distanciadas umas das outras, mas com crescente intensidade.” (p. 75)
“Com a litografia, a técnica de reprodução registra um avanço decisivo.” (p. 76)
“A litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a impressão. Mas poucas décadas após a invenção da litografia, as artes gráficas foram ultrapassadas pela fotografia. Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objetiva.” (p. 76)
“Se o jornal ilustrado estava virtualmente oculto na litografia, também na fotografia o está o filme sonoro” (p. 76)
“No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingido um nível tal que começara a tornar objeto seu, não só a totalidade das obras de arte provenientes de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos.” (p. 77)

II
“Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas aí, que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. ” (p. 77)
“O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade.” (p. 77)
“O domínio global da autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não só a esta. Mas enquanto o autêntico mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução manual que, regra geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à reprodução técnica. Para tanto há um motivo duplo: em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica surge como mais autônoma do que a manual. (...) em segundo lugar, pode colocar o original em situação que nem o próprio original consegue atingir.” (p. 78)
“As situações a que se pode levar o resultado da reprodução técnica da obra de arte, e que, aliás, podem deixar a existência da obra de arte incólume, desvalorizam-lhe, de qualquer modo, o seu aqui e agora.” (p. 78)
“A autenticidade de uma coisa é a soma de tudo que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico.” (p. 79)
“... o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que liberta o objeto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, atualiza o reproduzido em cada uma das suas situações. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradição que é o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. (...) O seu agente mais poderoso é o filme. O seu significado social também é imaginável, na sua forma mais positiva, e justamente nela, mas não sem o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do valor da tradição na herança cultural. Este fenômeno é mais evidente nos grandes filmes históricos. Cada vez engloba mais posições no seu domínio.” (p. 79)

III
“O modo em que a percepção sensorial do homem se organiza – o medium em que ocorre – é condicionado não só naturalmente, como também historicamente. A época das grades invasões, em que surgiram a indústria de arte do Baixo Império e a Gênese de Viena, tinha não só uma arte diferente da antiguidade como também uma outra percepção.” (p. 80)
“É aconselhável ilustrar o conceito de aura, acima proposto para objetos históricos, com o conceito de aura para objetos naturais.” (p. 81)
“Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objeto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução. E a reprodução, tal como nos é fornecida por jornais ilustrados e semanários, diferencia-se inconfundivelmente do quadro. Neste, o caráter único e a durabilidade estão tão intimamente ligados, como naqueles a fugacidade e a repetitividade. Retirar o invólucro a um objeto, destroçar a sua aura são características de uma percepção, cujo ´sentido para o semelhante no mundo´  se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta no fenômeno único. Assim, manifesta-se no domínio do concreto o que no domínio da teoria se torna evidente, com o crescente significado da estatística.” (p. 81)

IV
“A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Essa tradição, ela própria, é algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutável.” (p. 82)
 “O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, as obras de arte mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É, pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura, na obra de arte, nunca se desligue completamente da sua função ritual.” (p. 82)
De acordo com a concepção de Singularidade de Benjamin, podemos defini-la também como AURA. Que ele destaca como algo que se tenha perdido na reprodutibilidade técnica da obra de arte. Benjamin apresenta a definição de aura como: “a manifestação única de uma lonjura, por mais próxima que esteja mas não representa do que a formulação do valor de culto da obra de arte, em categorias da percepção espacial e temporal. Lonjura é o oposto de proximidade. A lonjura essencial é a inacessível. (...) A proximidade propiciada pela sua matéria não afeta a lonjura que mentem depois de sua manifestação.”
“Quando, com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário (que coincide com o alvorecer do socialismo), a arte sente a proximidade da crise que, cem anos mais tarde, se tinha tornado inequívoca, reagiu com a doutrina da ´I´art pour l´art´, que é uma teologia da arte. Dela surgiu precisamente uma teologia negativa na forma de uma arte ´pura´ que recusa, não só qualquer função social da arte, como também toda a finalidade através de uma determinação concreta.” (p. 83)
“... a reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na história do mundo, da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte reproduzida, torna-se cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade.” (p. 83)
“... com o fracasso do padrão de autenticidade na reprodução de arte, modifica-se também a função social da arte. Em vez de assentar no ritual, passa a assentar numa outra praxis: a política.” (p. 84)

V
“A recepção da arte verifica-se com diversas tônicas, das quais se destacam duas, polares. Uma assenta no valor de culto, a outra no valor de exposição da obra de arte.” (p. 84)
“O alce representado pelo homem da idade da pedra, nas paredes das suas cavernas, é um instrumento mágico. É certo que ele o expõe perante os homens, mas é principalmente dedicado aos espíritos. Hoje o valor de culto parece requerer que a obra de arte permaneça oculta. (...) Com a emancipação de cada uma das práticas da arte, do âmbito ritual, aumentam as oportunidades de exposição dos seus produtos. ” (p. 86)
“Com os diversos métodos de reprodução técnica da obra de arte, a sua possibilidade de exposição aumentou de forma tão poderosa que o desvio quantitativo entre ambos os seus polos, tal como originalmente existiam, se traduz numa alteração qualitativa da sua natureza. Nos primórdios, a obra de arte, devido ao peso absoluto que assentava sobre o seu valor de culto, transformou-se, principalmente, num instrumento da magia que só mais tarde foi, em certa medida, reconhecido como obra de arte. Da mesma forma, atualmente, a obra de arte devido ao peso absoluto que assenta sobre o seu valor de exposição, passou a ser uma composição com funções totalmente novas, das quais se destaca a que nos é familiar, a artística, e que, posteriormente, talvez venha a ser reconhecida como acidental.” (p. 86-87)

VI
“No culto da recordação dos entes queridos, ausentes ou mortos, o valor de culto da imagem tem o seu último refúgio. Na expressão efêmera de um rosto humano acena, pela última vez, a aura das primeiras fotografias. (...) Mas quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição sobrepõe-se, pela primeira vez, ao valor do culto.” (p. 87)

VII
“A controvérsia travada no decurso do século XIX, entre a pintura e a fotografia relativamente ao valor artístico dos seus produtos, parece hoje dúbia e confusa. (...) Na medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus fundamentos de culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração da função da arte, que com isso se verificou, deixou de existir na perspectiva do século. O mesmo sucedeu no século XX, que assistiu à evolução do cinema.” (p. 88)
“Já se tinha dedicado muita reflexão vã à questão de saber se a fotografia seria uma arte – sem se ter questionado o fato de através da invenção da fotografia, se ter alterado o caráter global da arte – e, logo a seguir, os teóricos do cinema sucumbiram ao mesmo erro.” (p. 89)
“É significativo que, ainda hoje, autores particularmente reacionários procurem um significado do filme na mesma direção, senão no sagrado, pelo menos no sobrenatural.” (p. 90)

VIII
“Não há dúvida de que no teatro o desempenho artístico do ator é apresentado ao público pela sua própria pessoa; pelo contrário, o desempenho artístico de ator de cinema é apresentado ao público por um equipamento, o que tem dois tipos de consequência. (...) a representação do ator é submetida a uma série de testes óticos. Esta é a primeira consequência do fato de a representação do ator de cinema ser apresentada pelo equipamento. A segunda assenta no fato de que uma vez que o ator de cinema não representa perante o público, não pode adaptar, durante a atuação, o seu desempenho à reação do mesmo, possibilidade reservada apenas ao ator de teatro. (...) A identificação do público com o ator só sucede na medida em que aquele se identifica com o equipamento. Assimila, pois, a sua atitude: testa. Isto não é atitude a que se possam expor valores de culto.” (p. 90-91)

IX
“Para o cinema é mais importante que o ator se apresente perante a câmara a si próprio do que perante o público como outrem.” (p. 91)
“A aura que se manifesta em torno de um Macbeth não pode ser separada da que, para um público ao vivo, rodeia o ator que representa aquele personagem. A especificidade do registro em estúdio cinematográfico reside no fato de colocar o equipamento no lugar do público. Assim, a aura que envolve o ator tem de desaparecer e, por conseguinte, também a do personagem representado.” (p. 92)
“Para a obra de arte que surge integralmente da sua reprodução técnica – como o filme – não há maior contraste que o palco. Qualquer observação cuidadosa prova este fato. (...) O ator que representa no palco, identifica-se frequentemente com um papel. Ao ator de cinema esta possibilidade é frequentemente recusada. A sua atuação não é, de modo nenhum, um trabalho único, mas sim o resultado de várias intervenções. (...) Nada mostra mais claramente que a arte abandonou o império da ´bela aparência´ que, até então, era considerado o único em que podia prosperar.” (p. 93-94)

X
“O ator de cinema nunca deixa de ter consciência deste fato (que sua imagem será projetada para o público). O ator de cinema, quando está perante a câmara, sabe que em última instância está ligado ao público: o público dos receptores, que constituem o mercado.” (p. 95)
“... em determinadas circunstâncias, qualquer um pode ser parte de uma obra de arte; (...) Qualquer homem, atualmente, pode ter a pretensão de ser filmado. Esta pretensão pode ser mais bem clarificada olhando para a situação histórica da escrita contemporânea.” (p. 96)
“Com a crescente expansão da imprensa, que proporcionava aos leitores cada vez mais órgãos locais políticos, religiosos, científicos e profissionais, uma parte cada vez maior dos leitores começou por, de início ocasionalmente, passar a escrever. Tudo isto começou com a imprensa diária a abrir aos leitores o seu ´correio´, e atualmente a situação é tal que quase não deve haver um europeu, inserido no mundo do trabalho, que não tenha tido possibilidade de publicar uma experiência laboral, uma reclamação, uma reportagem, ou algo afim. Assim, a diferença entre autor e público está prestes a perder o seu caráter fundamental. (...) A competência literária deixa de ser fundamentada numa formação especializada para passar a sê-lo numa formação politécnica, tornando-se deste modo em bem comum. Tudo isto pode ser transposto para o cinema, no qual se observam alterações numa década, que relativamente à literatura demoraram séculos a impor-se. (...) Nesta circunstâncias, a indústria cinematográfica tem todo o interesse em incitar a participação das massas, através de concepções ilusórias e especulações ambíguas.” (p. 97-98)

XI
“A realização de um filme, especialmente de um filme sonoro, proporciona um espetáculo como nunca anteriormente, em tempo ou lugar algum, tinha sido imaginável. É um processo onde não existe nenhum ponto de observação que permita excluir do campo visual o equipamento de registro, de iluminação, o pessoal de apoio, etc..” (p. 98)
“... no estúdio cinematográfico, o equipamento penetrou de tal forma na realidade que o seu aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, é o resultado de um procedimento particular, nomeadamente do registro de um aparelho fotográfico ajustado expressamente e da sua montagem com outros registros do mesmo tipo. O aspecto da realidade, isento de aparelhagem, adquiriu aqui o seu aspecto artificial, e a visão da realidade imediata tornou-se um miosótis no mundo da técnica.” (p. 99)
“... como se comporta o operador de câmara relativamente ao pintor? (...) O pintor no seu trabalho, observa uma distância natural relativamente à realidade, o operador da câmara, pelo contrário, intervém profundamente na textura da realidade. Há uma enorme diferença entre as imagens que obtém. A do pintor é total, enquanto a do operador de câmara consiste em fragmentos múltiplos, reunidos devido a uma lei nova.” (p. 100)

XII
“A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a relação das massas com a arte. Reacionárias, diante, por exemplo, de um Picasso, transformam-se nas mais progressistas frente a um Chaplin. (...) O convencional é apreciado acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No cinema, coincidem as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a circunstância decisiva é que em nenhum outro lugar, como no cinema, a reação maciça do público, constituída pela soma da reação de cada um dos indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À medida que essas reações se manifestam, o público controla-as.” (p. 100-101)

XIII
“O que caracteriza o filme é não só a forma como o homem se apresenta perante o equipamento de registro, mas também a forma como, com a ajuda daquele, reproduz o seu meio ambiente.” (p. 102)
“O cinema, em toda amplitude da percepção ótica, e agora também acústica, teve como consequência um aprofundamento semelhante da apercepção. O reverso deste fato reside em que os desempenhos num filme são analisáveis mais exatamente e sob mais pontos de vista do que os desempenhos apresentados num quadro ou no palco. (...) Uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores escondidos em aspectos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais com uma direção genial da objetiva, aumenta a compreensão das imposições que regem a nossa existência e consegue assegurar-nos um campo de ação imenso e insuspeitado. (...) Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. (...) A câmara leva-nos ao inconsciente ótico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.” (p. 103-105)
XIV
“Foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cuja satisfação plena ainda não chegou a hora. (...) O seu impulso só agora se torna reconhecível: o dadaísmo tentava criar, através da pintura ou da literatura, os efeitos que hoje o público procura no cinema.” (p. 106)
“Perante um quando de Arp ou de um poema de August Stramm é impossível ter a mesma atitude de recolhimento ou de opinião que se tem perante um quadro de Derain ou um poema de Rilke. (...) As manifestações dadaístas asseguravam de fato uma distração intensa colocando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa ação tinha que satisfazer, pelo menos, uma exigência: provocar o escândalo público.” (p. 106)
“De espetáculo atraente para o olhar ou sedutor para o ouvido, a obra de arte tornou-se, no dadaísmo, um choque. Afetava o espectador, adquiria uma qualidade tátil. (...) Comparemos a tela em que se desenrola um filme com a que está subjacente a um quadro. Esta última convida o observador à contemplação, perante ela pode entregar-se ao seu próprio processo de associações. Diante do filme não pode fazê-lo, mal registra uma imagem com o olhar e já ela se alterou. Não pode ser fixada. (...) Através da sua estrutura técnica, o filme libertou o efeito de choque físico do invólucro moral em que o dadaísmo ainda o mantinha, de certo modo, envolvido.” (107-108)

XV
“A massa é uma matriz da qual, atualmente, surgem novas formas relativamente aos comportamentos habituais para com a obra de arte. A quantidade transformou-se em qualidade: o número muito mais elevado de participantes provocou uma participação de tipo diferente. (...) O que mais contesta no cinema é a forma de participação que suscita nas massas. (...) Como se vê, no fundo, trata-se da velha queixa de que as massa procuram diversão, mas que a arte exige recolhimento por parte do observador. Trata-se de um lugar-comum. (...) A diversão e o recolhimento formam um contraste que nos permite a seguinte formulação: aquele que se recolhe perante a obra de arte, mergulha nela, entra nesta obra, como esse lendário pintor chinês ao contemplar a sua obra acabada. Pelo contrário, as massas em distração absorvem em si a obra de arte.” (p. 108-109)
“... as tarefas que são apresentadas ao aparelho de percepção humana, em épocas de mudança histórica, não podem ser resolvidas por meios apenas visuais, ou seja, da contemplação. Elas só são dominadas gradualmente, pelo hábito, após a aproximação da recepção tátil.” (p. 110)
“Através da distração que a arte oferece, podemos verificar de modo direto em que medida se terão tornado resolúveis novas tarefas da apercepção. Aliás, como para cada indivíduo existe a tentação de se furtar a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as de maior peso e importância se conseguir mobilizar as massas. Concretiza-o no cinema atual. A recepção na diversão, cada vez mais perceptível em todos os domínios da arte, e que é sintoma das mais profundas alterações na apercepção, tem no cinema o seu verdadeiro instrumento de exercício. (...) O cinema rejeita o valor de culto, não só devido ao fato de provocar no público uma atitude crítica, mas também pelo fato de tal atitude crítica não englobar, no cinema, a atenção. O público é um examinador, mas distraído.” (p. 110)


Epílogo
“A crescente proletarização do homem contemporâneo e a crescente formação de massas são duas faces da mesma medalha. (...) À violência sobre as massas a quem, através do culto de ´fuhrer´, o fascismo impõe a subjugação, corresponde a violência que sofre um aparelho utilizado ao serviço da produção de valores de culto.” (p. 111-112)
“´Fiat ars – pereat mundus´ (Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer), diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é, evidentemente, a consumação da ´l´art pour l´art´. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objeto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objeto de autoconteplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano.” (p. 113)


Referência

BENJAMIN,  Walter.  A  obra  de  arte  na  era  de  sua  reprodutibilidade  técnica. In:_______________. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.