Para
Heidegger, a técnica
não é a mesma coisa que a essência
da técnica, e que questionamos a técnica quando questionamos o que ela é.
Para ele, os dois enunciados para essa questão - (1) “técnica é um meio para os fins.” e (2) “técnica é um fazer do homem.”
- estão relacionados, pois estabelecer
fins e para isso arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano.
Essa
concepção de técnica, de acordo com Heidegger, segundo a qual ela é um meio e
um fazer humano, pode ser chamada de determinação instrumental e antropológica da técnica, e que a técnica moderna também é
um meio para fins. Nesse sentido, “todo esforço para conduzir o homem a uma
correta relação com a técnica é determinado pela concepção instrumental da
técnica. Tudo se reduz ao lidar de modo adequado com a técnica enquanto meio.”
Entretanto,
Heidegger indaga sobre a importância ou possibilidade de não tratarmos a
técnica como mero meio, alertando para o fato de que não está errado tratá-la
como determinação instrumental, mas ainda que seja correta a determinação
instrumental da técnica, isso não nos mostra sua essência - ou a verdade.
Desta
forma, ele propõe dois questionamentos: “o que é o instrumental mesmo? Onde se
situam algo como um meio e um fim?” Atribui então à causa um aspecto fundamental neste
questionamento, destacando que as quatro causas, de acordo com a tradição
filosófica, (1) a causa
materialis, (2) a
causa formalis, (3) a
causa finalis e (4) a
causa efficiens, representa a técnica como meio. Heidegger questiona
essa definição e afirma que enquanto a doutrina das quatro causas não for
examinada, “a causalidade e com ela o instrumental e, junto a este, a determinação
usual da técnica permanecerão na escuridão e destituídos de fundamento”.
A
partir dessas e outras considerações, Heidegger discorre sobre o comprometimento,
entendido normalmente como causalidade, o que inviabiliza o entendimento sobre
o que é propriamente o instrumental, que reside no que é causal. E após uma
exposição sobre as questões referentes ao “comprometimento”, que pode ser
entendido como “ocasionamento”,
Heidegger chega ao “desocultamento”,
um “desabrigar”,
algo que surge (trazer à frente), que tratamos como verdade, mas para Heidegger tem a ver com a
essência da técnica, “pois no desabrigar se fundamenta todo produzir.” Nesse
sentido, a técnica não é simplesmente um meio, é um modo de desabrigar, que
pode ser tratado como verdade.
Heidegger
reconhece que se trata de uma perspectiva estranha, mas que pode contribuir
para o entendimento da palavra “técnica”, que ele define não simplesmente
como nome para o fazer e poder manual, mas também para as artes superiores e
belas artes, pertence também ao produzir, é algo poético.
No
entanto, Heidegger ainda chama a atenção para o fato da palavra técnica desde
os tempos mais antigos na Grécia dar nome para o conhecer em sentido amplo, que significa ter um
bom conhecimento de algo, ter uma boa compreensão de algo. Assim “o conhecer dá
explicação e, enquanto tal, é um desabrigar”.
De
acordo com esse apontamento, “técnica é um modo de desabrigar. A técnica se
essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o desocultamento.” O
que seria válido para “o pensar grego” ou para a técnica manual, mas não para a
moderna técnica das máquinas de força, e, de acordo com Heidegger, é justamente
esta técnica que inquieta. E volta a questionar: “O que é técnica moderna?”
Ainda
pode ser vista como um desabrigar, mas não como um levar à frente, e sim como um
desafiar que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia
suscetível de ser extraída
e armazenada.
Explorar, transformar, armazenar e distribuir caracterizam
esse desabrigar, que “desabriga para si mesmo os seus próprios e múltiplos
caminhos engrenados, porque os dirige. A direção mesma, por seu turno, é
conquistada em todos os lugares. A direção e a segurança tornam-se inclusive os
traços fundamentais do desabrigar
desafiante.”
Para
tratar desse “desabrigar desafiante” da técnica moderna, Heidegger utiliza a
palavra “subsistência”,
mas não no sentido de “previsão”. “Ela significa nada menos do que o modo pelo
qual tudo o que é tocado pelo desabrigar desafiante se essencializa. Aquilo que
subsiste no sentido da subsistência não nos está mais colocado diante de nós
como um objeto.”
Heidegger
acrescenta as palavras “colocar”
e “encomendar”, ao
lado de “subsistência”, como fundamental na busca desse entendimento da técnica
moderna como o desabrigar que desafia. No entanto: “Quem completará o pôr que desafia, pelo
qual o que denominamos como sendo o real se desabrigará como subsistência?
Manifestamente será o homem. Em que medida ele torna possível tal desabrigar?”
Pois a técnica moderna não é um mero fazer humano. O desafiar, segundo
Heidegger, fará o homem requere o real enquanto subsistência tal como se
mostra.
Neste
sentido, Heidegger denomina essa invocação desafiadora, “...que reúne o homem a
requerer o que se descobre enquanto a subsistência de armação <Ge-stell>.” E explica
que o significado corriqueiro da palavra “armação” é um objeto.
“Armação
significa a reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para
desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação
significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não
é propriamente nada de técnico.”
A
armação não é um fazer humano, e nesse aspecto, a determinação instrumental da
técnica é ilusória. Neste ponto, Heidegger coloca a ciência exata da natureza, desde o século
XXVII, a serviço da técnica moderna, ainda que esta tenha somente na segunda
metade do século XVIII. De acordo com esse entendimento, a técnica moderna
só passa a ser viável a partir dos argumentos da ciência exata da natureza.
“A
moderna teoria física da natureza é a preparação, não da técnica, mas da
essência da técnica moderna. Pois o recolher que desafia no desabrigar
requerente já impera na física, embora propriamente ainda não se manifeste
nela. A física moderna é, em sua proveniência, a desconhecida precursora da
armação. Por muito tempo a essência da técnica moderna ainda se oculta, mesmo
ali onde máquinas de força são inventadas, onde a eletrotécnica e a técnica
atômica são colocadas em curso.”
Heidegger
afirma então que é um equívoco pensar a técnica moderna como uma ciência da natureza aplicada.
O que ocorre é que a essência da técnica moderna reside na armação, que
necessita empregar a ciência exata da natureza. Porem, a simples referência ao
nome armação como sendo a essência da técnica moderna não é a resposta à
questão da técnica. Neste sentido, Heidegger discorre sobre o que ele denominou
“armação”.
“A
armação não é nada de técnico, nada de tipo maquinal. É o modo segundo o qual a
realidade se desabriga como subsistência.” Heidegger prossegue afirmando que “a
essência da técnica moderna conduz o homem para o caminho daquele desabrigar
por onde o real, em todos os lugares mais ou menos captável, torna-se
subsistência.” Ou seja, a armação enquanto desafio, é um envio do destino, sendo que
destino seria um produzir, e o destino do desabrigar domina os homens.
O
destino para Heidegger é justamento o que conduz o homem à liberdade, e a
liberdade é o que leva a um desabrigamento para o seu caminho. Pensando a armação como um destino
do desabrigar: “já nos mantemos na liberdade do destino que de modo algum nos
aprisiona numa coação apática, fazendo com que perpetuemos cegamente a técnica
ou, o que permanece a mesma coisa, nos insurjamos desamparadamente contra ela e
a amaldiçoemos como obra do diabo. Ao contrário: se nos abrirmos propriamente à
essência da técnica, encontrar-nos-emos inesperadamente estabelecidos numa exigência
libertadora.”
Heidegger
vê o destino do desabrigar
como “o perigo”, e
se o destino se apresenta como armação ele é o maior perigo, pois “a armação
não põe apenas em perigo o homem em sua relação consigo mesmo e com tudo o que
é. Enquanto destino,
ela aponta para o desabrigar do tipo do requerer.” Ou seja, essa armação encobre
o desabrigar enquanto verdade. Desta forma, a ameaça dos homens não vem
primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica, mas na impossibilidade do
homem perceber a verdade.
A
partir dessa perspectiva do perigo do domínio da armação, Heidegger cita Hölderlin
(“Mas onde há perigo, cresce também a salvação”) para a necessidade de busca
por uma “salvação”
diante do perigo preconizado. Ao discorrer sobre o que seria de fato essa
“salvação” e sobre o sentido último de “essência”, Heidegger afirma que
estaria justamente na armação a possibilidade do homem se salvar, e seria
atentando para a essência da técnica.
“Assim,
a essencialização da técnica abriga em si o que menos poderíamos supor, o
possível emergir da salvação.”
Não
sendo a essência da técnica nada de técnico, Heidegger entende que é
imperativo a meditação essencial sobre a técnica, desenvolvendo uma discussão que
aproxima e distancia da essência da técnica. Desta forma, a arte, através da
meditação, seria uma possibilidade de “salvação”. Heidegger afirma que quanto
mais refletirmos de
forma questionadora,
mais nos aproximamos do caminho que salva. “Pois o questionar é a devoção do
pensamento.”
Heidegger, M.
(2002). Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel & M. S. C. Schubak,
Trans.). Petrópolis: Editora Vozes.