José
Carlos Vasconcelos e Sá
No
artigo “A Crítica da Técnica e da Modernidade em Heidegger e McLuhan”, José
Carlos Vasconcelos e Sá faz uma análise das teorias de Haidegger e McLuchan
acerca da modernidade e da instrumentalidade da técnica, especialmente
envolvendo a comunicação mediada pelas tecnologias. Trata-se de teorias críticas
apresentadas por dois autores de grande notoriedade abrangendo os problemas
provenientes de uma concepção e de uma utilização equivocadas dos aspectos
envolvendo as tecnologias na modernidade.
“A
experiência da modernidade é inseparável do esforço para reconceptualizar a
lógica de mediação das relações entre os seres humanos e a natureza e entre a
natureza e os objectos que os seres humanos produzem. (...)o. A procura de
figuras da mediação é, assim, sinônimo da procura de um caminho, de uma orientação
que permita estruturar e estabilizar visões do mundo organizadoras da experiência.”
(p. 124)
“Para
alguns, as ‘máquinas de comunicar’ seriam um mero suporte da interacção,
constituindo um conjunto de instrumentos que não se distinguiriam das utensilagens
pré-modernas. (...) O postulado desta tese é a ideia de
que a mediação
constitui ainda um
sector bem definido entre sujeitos
mediados por tecnologias.
Por outro lado,
é neste mesmo pressuposto que se
baseia a opinião, amplamente difundida, de que a mediação é equivalente à
linguagem.” (p. 125)
“No
entanto, a mediação pela palavra - que emerge, agora, como uma palavra
‘razoável’, dialogante, integrada numa ‘lógica do preferível’, geradora de
consensos - obscurece uma outra realidade que marca decisivamente as sociedades
tardo-modernas: a questão da tecnologia.” (p. 125)
O
autor argumenta que a tecnologia é frequentemente concebida como neutra e como passível
de controle pelo sujeito. No entanto alerta para o fato se tratar de uma
tecnologização da comunicação, que nos escapa ao controle e impõe novas formas
de mediação, num processo de “maquinação do sujeito”. Essa falta de
entendimento, que seria inevitavelmente uma forma de instrumentalidade da
técnica, pode resultar na incapacidade de exploração de possibilidades.
HEIDEGGER:
‘A ESSÊNCIA DA TÉCNICA NÃO TEM ABSOLUTAMENTE NADA DE TÉCNICO’
De
acordo com José Sá, Heidegger é um dos principais pensadores do século XX que insistiu
na importância da técnica para a compreensão da modernidade, e que sua
formulação mais completa se encontra no texto de 1954 intitulado ‘A Questão da
Técnica’ (Heidegger 1958: 9-48).
“A
sua tese essencial é a de que a metafísica levou ao esquecimento do Ser e,
correlativamente, que a metafísica realizada
é a modernidade.
A interrogação da
tecnologia em Heidegger provém,
assim e de forma intrínseca, da crítica da modernidade, a partir do ponto de
vista ontológico.” (p. 126)
“A
ênfase da crítica heideggeriana é a recusa da visão instrumental da tecnologia,
isto é, a tecnologia como um meio neutral de que se serviriam os seres humanos
para transformarem o mundo - o que implica uma crítica paralela de uma visão do
mundo como uma espécie de matéria prima do trabalho que age sobre ele com os
seus instrumentos, transformando-o.” (p. 126)
Para
Heidegger, segundo José Sá, a técnica deve ser concebida como uma forma de aletheia,
de verdade. “A essência da tecnologia moderna deve ser percebida como um
processo de des-ocultação da natureza com um carácter especial de provocação relativamente a ela.” (p.
126)
Heidegger
estabelece dois tipos de tecnologia:
1)
“A tecnologia anterior à Revolução Industrial, profundamente envolvida com a
natureza e servindo-se da natureza, mas essencialmente dependendo dela, no
sentido de que da natureza só transfere força e movimento” (p. 126-127). Heidegger
cita como exemplo os moinhos de vento como um tipo de tecnologia que envolve e
coopera com a natureza.
2)
“Em contraste marcante com o modelo tecnológico anterior, surge, com a
Revolução Industrial, uma prática e concepção tecnológica substancialmente
diferente. (...) A tecnologia moderna, regida por processos que se relacionam
com a descoberta, transformação, acumulação e distribuição, constitui, assim,
um modo de desocultamento substancialmente diferente daquele dominante nas
tecnologias pré-industriais” (p. 127). O exemplo desta vez é a central térmica
movida a carvão, que ao contrário do modelo anterior, extrai energias físicas
básicas e imediatamente as acumula em abstrato, de forma não sensível. Neste
caso específico, de forma distinta à exploração da natureza, a energia
acumulada é extraída em forma de carvão, que é transformada em eletricidade,
que pode ser rearmazenada e preparada para ser distribuída e usada segundo a
vontade humana. Heidegger ainda apresenta uma crítica da estética, que para ele
é inseparável da crítica da técnica, sendo a arte uma forma de aletheia também.
“O exemplo que fornece é o da central eléctrica que não se harmoniza nem
complementa a paisagem, perdendo, assim, a característica que aproximava os
objectos tecnológicos ‘antigos’ das obras de arte.” (p. 127)
A
“moderna tecnologia”, nesse entendimento de Heidegger, gera um mundo de objetos
sem valor em si, a não ser pelo uso que se lhes possa dar, o que ele chama de bestand. O que resulta em uma distinção
em relação ao processo técnico tradicional, que fabricava objetos únicos.
O
autônomo relativamente ao humano, denominado de Gestell, a pré-condição transcendental da tecnologia, é a concepção
de Heidegger da essência da tecnologia. Seria a “dimensão da tecnologia moderna
que ordena ou rege o modo particular deste desocultamento” (p. 127).
“Esta
disposição é entendida como uma estrutura cognitiva impessoal ou uma vontade
impessoal que não só provoca o mundo, mas, também e essencialmente, incita os
seres humanos, de maneira sistemática, precisa e constante, a provocar o mundo.
A acção desta vontade impessoal desoculta sempre, da mesma forma, a natureza”
(p. 128).
Disso
resulta a visão forte de Heidegger entre tecnologia e Ser: “o desaparecimento
do desocultamento em si acarreta, juntamente, o desaparecimento daquele no qual
a verdade acontece, isto é, o próprio Ser. O processo de desocultamento da
tecnologia é o movimento que leva a ‘fechar’ a natureza no mesmo e,
simultaneamente, ao iludir a verdade das coisas, obrigar o Ser à sua
não-revelação” (p. 128).
Heidegger
procura demonstrar o equívoco da filosofia ocidental em considerar a técnica
como algo neutro e passível de controle.
No
entanto, como alerta José Sá, “... algumas reservas têm vindo a ser levantadas a
esta análise, dizendo respeito, nomeadamente, à exclusividade da visão
ontológica em detrimento da dimensão antropológica. Por exemplo, para Dominique
Bourg (1999), o menosprezo das realidades empíricas e sociais - que considera patente
na análise heideggeriana - tem consequências
marcantes, em particular consequências políticas.” (p; 128).
Mas
Heidegger mantêm-se atual no cenário analítico contemporâneo em relação à
técnica e à cultura, em que “a técnica não pode ser simplesmente apreendida do ponto
de vista do controle e da instrumentalidade” (p. 129).
McLUHAN:
‘O MEIO É A MENSAGEM’
Em
Marshall McLuhan, a crítica da técnica e da modernidade parte da análise dos mass media e das relações destes com as
mensagens que veiculam.
“A
proposição fundamental do pensamento teórico de McLuhan é que os media
sobredeterminam a palavra e o seu sentido. Esta é a tese por detrás da
formulação, hoje proverbial, ‘The media is the message’, que se tornou um lugar
comum interpretativo da cultura de massas” (p.129). Mas para José Sá a teoria
de McLuhan merece novos olhares críticos.
O
autor destaca que existem diferenças entre a teoria de McLuhan e a de Heidegger,
onde o primeiro teve a influência dos estudos literários e da teoria da comunicação.
MaLuhan desenvolveu estudos sobre Chesterton, e através dele que “... se envolve
na análise crítica do movimento moderno representado por Joyce, Pound, Elliot,
entre outros, com os quais partilha a mesma visão do mundo que podemos
sintetizar como sendo inerentemente crítica em relação ao positivismo e ao
cientificismo dominantes, posição que vai determinar a sua recusa da ideia de
progresso exclusivamente orientada pelo desenvolvimento técnico” (p. 130).
Porém,
como adverte José Sá, da mesma forma que a técnica é recriminada, também é “objeto”
de fascínio, é vista como um instrumento que pode dignificar a existência
humana, o que resulta em uma relação ambígua entre técnica e mística, progresso
e sentimento. “... assim, na primeira fase da carreira intelectual de McLuhuan,
uma nítida posição crítica em relação à tecnologia e à ciência que o século XX,
pelo menos na primeira metade, veio a desenvolver (...) McLuhan pertence àquela
constelação de pensadores modernos que mantêm relativamente à tecnologia uma
relação de fascínio ambíguo que nunca permite um distanciamento definitivo.”
(p. 130).
A
partir de uma análise sistemática de Allan Poe, “... McLuhan acaba por repudiar
as atitudes simplificadas de indignação ou de recusa, em favor da vigilância
produtiva face à técnica” (p. 131).
“Esta
viragem crítica está bem patente, na fase seguinte, num dos seus primeiros estudos
sobre a comunicação de massas – The Mechanical Bride. É a partir deste texto
que McLuhan passa a reconhecer que a cultura de massa está não apenas cheia de
potencialidades de destruição, mas também de promessas de fecundos desenvolvimentos” (p. 131)
McLuhan
desenvolve estudos sobre os anúncios de publicidades fazendo considerações em
relação à arte de vanguarda.
“...a
reapreciação da cultura pop levou McLuhan a elaborar um conjunto de teses,
segundo as quais os processos comunicacionais estariam estreitamente ligados às
tecnologias dominantes em cada época” (p. 132). Com influência direta,
especialmente, de Harold Innis, que era economista canadiano responsável pela tese
segundo a qual a principal força de transformação social poderia ser encontrada
nas várias revoluções que haviam ocorrido nas tecnologias e, especialmente, nas
tecnologias da comunicação.
A
partir dessa perspectiva, McLuhan formula a hipótese que iria desenvolver na
sua investigação sobre os media. “Os meios de comunicação afectam a experiência
e, através dela, toda a cultura, mais profundamente que as mensagens” (p. 132).
“McLuhan
articulou uma série de questões que constituem os aspectos centrais da análise
que levou a cabo sobre os media, a saber: de que maneira os meios de comunicação
influenciam as mensagens? Que aspectos do humano são afectados pelos meios de
comunicação? Que relação existe entre os media e o homem? Por que razão
determinadas épocas legitimam certos meios e não outros?” (p. 132)
As
respostas para essas perguntas fizeram de McLuhan um autor incontornável da cultura
da segunda metade do século XX, articulando de modo original, comunicação, mediação,
tecnologia e cultura. O que fez “... corresponder a cada época histórica um meio
cultural de comunicação específico, distinguindo uma série de categorias, das
quais podem ser destacadas três dimensões ou conjuntos históricos, técnicos e
comunicacionais” (p. 132):
1)
“A Dicotomia Oral/Escrito” – para McLuhan, o encantamento imaginativo
proveniente das trocas orais foi quebrado com a invenção da escrita, pois o canal
da audição é mais rico que o da visão.
2)
“O Surgimento dos Tipos Móveis – A Imprensa” – com a imprensa mecanizada, de
acordo com McLuhan, o empobrecimento provocado pela escrita aumentou. A
orquestração sensitiva da tradição oral se perde ao ser substituída pela
linearidade das letras impressas e a regularidade da página. “... o sujeito
fechou o seu espírito a possibilidades mais amplas de expressão imaginativa.
(...) o sujeito moderno condiciona-se a aceitar, inadvertidamente, a tirania
desumanizadora da vida mecânica” (p. 133).
3)
“A Era Electrónica” – numa visão otimista, McLuhan concebe a era electrónica
como algo que permite aos seres humanos pensar em conjunto, “através de um meio
tecnológico constituído à sua imagem e semelhança. A rede electrónica voltou, desta
forma, a tribalizar o homem moderno, dominou as influências desintegradoras da
imprensa e recolocou o humano na dimensão da ‘aldeia global’” (p. 134).
No
entanto, “McLuhan foi atacado severamente por muitos, insistindo os críticos na
sua unilateralidade, ingenuidade ou excessiva simplificação” (p. 134).
“...
a questão importante que interessa compreender é que a mediação se tornou uma
dimensão crucial na cultura tardo-moderna da comunicação e da informação,
abrindo um campo vasto, acerca do qual McLuhan foi, sob alguns aspectos pelo
menos, o pioneiro teórico. Pesou, neste esforço, a ideia fundamental segundo a
qual ‘o meio é a mensagem’ e que, bem vistas as coisas, vai à revelia de tudo o
que é normalmente aceite na cultura moderna” (p. 134).
Dessa
forma, a crítica da técnica e da modernidade, em McLuhan, implica que o
conteúdo da mensagem é irremediavelmente modelado pelo meio pelo qual a
mensagem é difundida.
Para
McLuhan, a mediação é fundamental na cultura moderna. “Se vivemos apenas no
‘meio’, a nostalgia das origens e os projectos finais têm de ser
reinterpretados. Não estão nem aquém, nem além do espaço da mediação, sendo sim
uma figuração estratégica dela própria” (p 134).
José
Sá então cita Régis Debray (1991, 1995) como uma dos principais autores contemporâneos
envolvidos com as questões da mediação, que procura delimitar uma teoria da “mediologia”.
Nos chama a atenção para o fato de não confundir a mediação com os media,
enquanto máquinas de comunicar. Nesse sentido, é necessário analisar como uma
ideia se torna força material pelas mediações, os ‘media’ como um prolongamento
“particular, tardio e intrusivo”.
“Para
Debray, ela entra mesmo em catástrofe com o crescente peso da imagem, na qual
se encadeia directamente o desejo, abolindo toda a distância. Esta visão é
abundantemente ilustrada pela imagem do ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque,
difundidas até à exaustão pelas cadeias de televisão de todo o mundo. Como diz
Debray (1995: 192): ‘O ícone é um objecto amável e dinamizante, a feminitude da
imagem e a guerra das imagens devem ser consideradas – ou se perdem – juntas’”
(p. 135).
“A
articulação entre as práticas críticas de Heidegger e McLuhan pode ser
enfatizada, em particular, nesta necessidade de libertar a mediação das formas
tecnológicas tradicionais que, tal como as formas clássicas de análise crítica,
já entraram em crise. A resposta a dar à cultura passa pelo reconhecimento,
como disse, em algum lugar, G. Agamben, de que tudo se joga ‘em exibir uma
medialidade, em tornar visível um meio como tal’, o que passa por ir além da instrumentalidade
e da ilusão de controle” (p. 136).
“A
reunião dos pensamentos de Martin Heidegger e Marshall McLuhan nesta análise é,
assim, destinada a tornar visíveis as correlações analíticas entre a afirmação
da autonomia da técnica sobre a criação (Heidegger) e da autonomia do meio
sobre a mensagem (McLuhan). Ambas as posições são investidas numa crítica da
visão predominante da instrumentalidade ou da natureza puramente instrumental da técnica. Estas questões
são orientadas para o modo como a superação da visão instrumentalista afecta a relação
entre mediação, comunicação e cultura. Se esta realidade já era clara na época dos
mass media e de McLuhan, é hoje
incontornável, na disseminação das culturas virtuais e do ciberespaço”
(p. 137).
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